Por Carolina Caixinha
O Green Future AutoMagazine entrevistou Lincoln Paiva, presidente e fundador do Instituto Green Mobility do Brasil e especialista em Gestão de Cidades na Universidade de São Paulo.
Como presidente e fundador do Instituto Green Mobility no Brasil, pode partilhar com os leitores do Green Future quais os aspetos mais relevantes da instituição, no sentido da preservação do nosso planeta, de um futuro mais verde e da construção de cidades mais inteligentes?
Quando fundei o Green Mobility, em 2008, há 12 anos, imaginava que a solução para as cidades, sob o ponto de vista da sustentabilidade do planeta, passaria por uma modificação na motorização dos carros, no powertrain, numa economia de baixo carbono e na alteração da matriz energética. Desde então percebi que não se tratava apenas da tecnologia, mas também do comportamento dos seres humanos. A tecnologia já nós temos. No Brasil os carros são híbridos, circulam com uma mistura de álcool e gasolina, e os carros elétricos estão disponíveis – contudo, são ainda muito caros num país onde 30% da população vive abaixo do limiar de pobreza. Seria preciso estudar melhor as regulamentações, o papel dos veículos na cidade, as infraestruturas de transporte e as nossas práticas ecológicas.
Quando se ‘apaixonou’ e começou a trabalhar na temática da mobilidade urbana sustentável? Foi por imperativos profissionais ou académicos? Ou achou que estávamos num ponto em que precisávamos rapidamente de agir a favor do nosso planeta?
Na verdade, em 2007, tive uma oportunidade profissional para transferir o meu trabalho de São Paulo para Lisboa. Naquela época, quando o IPCC [Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas] tinha divulgado o relatório sobre mudanças climáticas, eu era já especialista em emissões de gases com efeito de estufa, realizando relatórios ambientais. Fui morar para o bairro do Príncipe Real em Lisboa e não tinha a menor possibilidade de comprar um carro, que aliás era muito mais barato do que no Brasil. Contudo, não tinha onde estacionar. Averiguei e o estacionamento mais próximo seria no Teatro São Luís. Desta forma, tive que lidar com esta nova situação. Eu não comprei carro, tive de me adaptar a utilizar os transportes públicos e a caminhar. Esta nova situação mostrou-me um novo mundo, uma nova cidade, pessoas nas ruas e nos cafés – a vida dinâmica em que quem anda de carro participa muito pouco.
Poluição e COVID-19: como é que estes dois fenómenos se intersetam ou complementam no sentido mais negativo? Considera que os impactos de ambos em termos económicos e de saúde são semelhantes?
Sim, a COVID-19 apenas evidenciou um problema maior do que não ter vacina. Os laboratórios profissionais e as universidades não estavam preparadas para o problema, as corporações viram uma oportunidade para lucrar mais rápido e a vacina saiu em menos de um ano, porque os governos a financiaram. O mesmo aconteceu com o meio ambiente, só que como os problemas fatais ocorrem através da acumulação, estes problemas não são visíveis e seu controlo é insuficiente. Todavia, as pessoas estão a morrer prematuramente, dez e vinte anos mais cedo, numa proporção muito maior do que as vítimas de COVID-19 e ninguém dá conta disso. Colocam em segundo plano os investimentos em infraestruturas e saneamento básico nas cidades, onde a COVID-19 é mais eficaz. Ou seja, a população mais pobre é aquela que mais sofre e morre.
Os últimos tempos, que coincidiram com confinamentos e, consequentemente, maior reflexão, poderão ter provocado uma maior consciência das nossas fragilidades e da importância de construir mais espaços verdes e azuis em ambiente urbano?
Eu percebo que nos países mais desenvolvidos, na Europa e nos Estados Unidos, isso se tenha verificado. No entanto, nos países latino-americanos não há [essa consciencialização]. E atualmente no Brasil, um grupo de negacionistas que aproveitam a ignorância da população em diversos níveis sociais, mantida por diversos governos que acreditam na ‘terra plana’, que a ciência quer controlar o homem, que as vacinas não funcionam, querem soluções armadas e governos ditatoriais e não têm apreço pela democracia. Estes grupos não se importam com um mundo mais sustentável. Pelo contrário, querem isolamento, fragmentação e a criação de muros sociais que dividem a população entre pobres e ricos. A restante população, vejam bem, não sabe o que quer, acham que o Estado é grande, que é necessário privatizar, e não dão a menor atenção aos espaços públicos. É preciso retomar a realidade: ser-se ecológico não pode ser confundido com o estilo de vida das pessoas mais ricas, opção para os mais ricos, qualidade de uma determinada marca ou produto. É preciso que signifique que todos tenham maior acesso à cidade, ao mundo.
Temos consciência de que algumas alternativas mais sustentáveis passam pela adoção de uma mobilidade suave – andar a pé, de bicicleta ou recorrer a transportes públicos, adotando uma mobilidade multimodal. No entanto, estes hábitos ainda são muito menosprezados. Será por falta de infraestruturas e de acessos ou por falta de motivação e informação? Ou até de segurança? Ou considera que, de uma forma geral, os cidadãos ainda não perceberam os benefícios de procurar alternativas mais amigas do ambiente?
Eu fiz uma especialização e um mestrado em Urbanismo, fui conselheiro de políticas urbanas do município de São Paulo, fui membro da comissão de paisagem urbana do município e conselheiro de meio ambiente da câmara. Luto há anos por uma política de deslocação mais sustentável. No entanto, os regulamentos, o desenho urbano e as leis não contribuem para isso. Não existe nenhuma lei no Brasil que obrigue um construtor a fazer boas calçadas e elaborar um plano para elas, ou mesmo um mapeamento de calçadas no município. Como isto não origina votos, o espaço público é marginalizado. Aqui, em São Paulo, existe uma lei que transfere a construção das calçadas para o dono da habitação que se encontra em frente. Ou seja, o cidadão é que tem de construir e fazer a manutenção. As calçadas não têm continuidade, ninguém cuida e fiscaliza, o que faz com que estas, que são o primeiro nível de urbanismo, não funcionem.
Na sua opinião, quais são as principais vantagens da mobilidade sustentável a nível urbano e empresarial?
Eu acredito que a parceria público-privada é sempre bem-vinda. Existem oportunidade reais para todos e todos podem lucrar – o Estado, as empresas e os cidadãos. No entanto, isto não se verifica nos países desenvolvidos, uma vez que há um certo grau de ‘patrimonialismo’, isto é, pessoas e empresas que acreditam que devam tirar o máximo proveito dos bens do Estado e levam a cabo uma verdadeira destruição do património público para benefício próprio. Isto faz com que os investimentos em infraestruturas sejam direcionados para grandes obras estruturais e uma simples calçada seja posta de lado, sendo que seria fundamental para um simples programa de mobilidade pedonal. Em Los Angeles, nos Estados Unidos, por exemplo, existe um manual de mobilidade pedonal para o construtor civil rever toda a calçada do quarteirão, e não apenas a secção anexa ao lote onde está a construir. Caso o construtor não se responsabilize, o projeto não será aprovado. Isto abre espaço para profissionais e investigadores. Com isto, a comunidade também sai a ganhar.
Dada a sua experiência e conhecimento, quais são os meios de transporte mais ecológicos que podemos adotar? Considera que são acessíveis para todos ou haverá fatores sociais e económicos que poderão pesar nesta escolha?
Caminhar é o meio mais sustentável que existe, mas depende da oferta de infraestruturas. É possível ver isso como uma enorme oportunidade para todos – empreendedores, cidadãos e Estado.
Como vê o desenvolvimento da mobilidade sustentável no Brasil?
Muito fraco. Registou uma regressão, embora hoje exista uma menor resistência. No entanto, existe ainda muitas pessoas contra esta ideia, sobretudo entre as elites políticas e económicas. Isto leva a que seja necessário atribuir maior importância aos ativistas e aos profissionais do meio ambiente, que precisam de se renovar.
Como perspetiva o futuro das grandes cidades? Na sua opinião em quantos anos se poderá estimar uma verdadeira revolução nas cidades?
Existem cidades que estão muito à frente, embora não pareçam. Londres está num nível bastante superior a São Paulo, que ainda luta para superar a pobreza, as favelas, a falta de hospitais, trabalho, salários, etc. Contudo, o problema da pobreza não é só dos países mais pobres. Os países ricos, como os Estados Unidos da América, originam um maior número de pobres do que o Brasil. Será necessário descentralizar os ganhos económicos e distribuir melhor o rendimento para que as cidades possam obter mais recursos para infraestruturas essenciais. No entanto, é preciso realçar que isto não resultará da privatização, nem do setor privado – que não se interessa por gente pobre. Esse é um papel do Estado. Assim, só depois de se resolver esta situação é que podemos pensar em cidades mais sustentáveis e inteligentes.
Para terminar e retomando ao tema ‘Green Mobility’, pode indicar-nos alguns dos projetos mais relevantes em que o ‘seu’ Instituto está envolvido?
Este ano de 2020 foi um ano muito difícil para todos: tivemos de nos ausentar, refletir, escrever mais; não tivemos tão envolvidos como de 2012 a 2017, quando desenvolvemos uma série de projetos de vias públicas, encerramento de ruas aos carros, planeamento urbano e o laboratório de políticas urbanas. Atualmente estamos a preparar-nos para podermos voltar no momento pós-pandemia. Acreditamos que a prioridade é agora a saúde pública, e estamos 100% confinados, a contribuir para um planeta melhor, mais saudável e sustentável. E aproveitamos para desejar, aos leitores da revista, sucesso, saúde e um excelente ano de 2021.
