António Gonçalves Pereira
Presidente da Ecomood Portugal
Numa época em que tanto se apela à descarbonização e à utilização de meios de mobilidade mais suaves, em Dezembro último confirmou-se que a esmagadora maioria dos pequenos veículos elétricos já vendidos em Portugal, como trotinetas, monociclos ou hoverboards, estão ilegais.
Este parece ser o resultado do Decreto-Lei n.º 102-B/2020, em cujo texto, logo de início, consta “atendendo à proliferação de veículos equiparados a velocípedes que podem circular em pistas de velocípedes e em pistas mistas de velocípedes e peões, e à sua extrema perigosidade na partilha de espaço, restringe-se a equiparação a velocípedes apenas a veículos com potência máxima contínua de 0,25 kW e que não atinjam mais de 25 km/h de velocidade em patamar”.
Para analisarmos esta questão, começo por lhe dar a ler estes três títulos:
- “Greg Van Avermaet ganhou o sprint atingindo quase 1.500 watts nos últimos 200 metros”.
- “Filippo Gana fez médias superiores aos 500 watts e 56 km/h no contra-relógio de hoje”.
- “Com quatro motores elétricos e uma potência a rondar os 1.000 cavalos que o ‘disparam’ até aos 100 km/h em apenas 3 segundos, o FFZero1 atinge uma velocidade máxima de 321 km/h. São números muito interessantes…”
Nos dois primeiros casos são mencionados ciclistas. Profissionais, é certo, mas humanos. Portanto, sem motor. Já no terceiro caso menciona-se um automóvel que, como muitos outros autênticos ‘mísseis’ de 2 e 4 rodas, poderá circular legalmente nas estradas de todo o mundo. Ficando ao critério do condutor usá-lo de forma legal ou usufruindo das suas tão ilegais capacidades.
Para os menos habituados a isto de kilowatts, digo-lhe que 0,25 kW equivalem a cerca de… 0,3 cavalos. Sim, menos de um terço de cavalo de potência. Para outra comparação bem elucidativa, vá espreitar a sua varinha mágica ou o seu aspirador. Mesmo não sendo das mais potentes, a varinha andará nos 450 watts. E o seu aspirador, mesmo caseiro e fraquinho, facilmente terá algo como 1,6 kW, ou seja, 2 cavalos. Já a sua bicicleta, monociclo ou trotineta, se forem elétricos, não podem ter nada que se compare.
E os limites dos automóveis?
E podíamos pensar que isso faz sentido, já que se destinam a partilhar espaços com peões. Mas não. Nem tão pouco as bicicletas a pedal o podem fazer, muito menos estes pequenos veículos electrificados. Porque, segundo o legislador, são de “extrema perigosidade na partilha de espaço” com peões e, até, com outros veículos sem motor. Portanto, estes limites são para circular nas ainda muito poucas ciclovias e, maioritariamente, nas ruas e estradas. Partilhando aí o espaço com os, ao que transparece no Código da Estrada, nada perigosos automóveis de qualquer potência e velocidade de ponta. Porque a esses não é imposto qualquer limite, podem mesmo ser fabricados, e vendidos, com capacidade para fazerem 3 ou 4 segundos dos zero aos fora da lei e o triplo da máxima das velocidades máximas.
Quase da mesma forma, o limite de 25 km/h imposto a estes pequenos veículos, além de ser muito menos do que, com alguma facilidade, se consegue atingir sem qualquer motor, acrescentam um factor de risco na partilha de espaço em muitas estradas, sobretudo naquelas em que os automóveis e camiões podem circular a 70 ou 90 km/h. Tal desfasamento de andamentos coloca em risco de vida não somente, como é mais óbvio, o utilizador do veículo de mobilidade suave, mas também os automobilistas que, surpreendidos por lhes aparecer repentinamente um veículo tão lento, ao desviar-se bruscamente, poderão despistar-se ou, até, colidir com outro veículo.
Mas, admito, não é o limite à velocidade máxima que me preocupa ou motiva estas linhas, mas sim um limite de potência que, em última análise, pode permitir a uma pessoa menos atlética ou com limitações motoras vencer uma subida mais íngreme. A esperança de muitos utilizadores era que, tal como aconteceu com as bicicletas, também para estes restantes veículos elo limite fosse alterado para 1 kW. Ou até, talvez 0,75 ou mesmo 0,5 kW, dado que há diferenças a ter em consideração entre estes veículos e as bicicletas. Como, aliás, tem vindo a ser apontado por alguns estudos e entidades europeias, como a Leva-EU.
Incentivar… proibindo?
Enquanto promotor profissional da mobilidade sustentável, a missão social que escolhi para o resto dos meus dias, confesso que tenho tentado nos últimos meses, empenhadamente, que algo nesta lei, tanto na sua formulação como nos limites impostos, me faça sentido. Algo que justifique estes limites. E isso tem incluído sondar autoridades do sector, activistas ambientais e da mobilidade, comercializadores destes veículos e, claro está, utilizadores.
Foi assim que fiquei a saber algo que nem me tinha ocorrido: a esmagadora maioria destes veículos entretanto já comercializados estão ilegais. Provavelmente mais de 90% têm potências superiores ao agora imposto por lei, que anteriormente era omissa. Portanto, se vir passar algum, o mais provável é que, para se deslocar sustentavelmente, esse seu concidadão esteja a correr o risco de ser autuado e, até, de ver o seu pequeno veículo apreendido.
É certo que necessitamos de muito melhor educação para a cidadania e que o Estado deve impor limites, para garantir a segurança de todos. Mas não deveria começar pelos muito mais pesados e perigosos motociclos, automóveis e camiões?
E, diga-me cá: não se notando ainda também uma aposta efectiva na rápida melhoria da oferta dos transportes públicos, será com leis destas que promovemos a tão urgente descarbonização e uma mobilidade mais amiga do ambiente, da cidade, da rua, da estrada, da ciclovia, da via partilhada, do passeio, do cidadão?
A (re)pensar.
Nota: escrito sem (des)acordo ortográfico.