Green Future-AutoMagazine

Quando o ‘carro elétrico’ é rei e ‘menos energia’ é rainha

Opinião de José Carlos Pereira

O xadrez voltou a estar na moda – daí o título em tom de brincadeira –, seja pela estratégia seja pela relevância que a série ‘O Gambito da Rainha/Dama’ [The Queen’s Gambit] da Netflix lhe deu nos últimos meses (ou voltou a dar, pois a vida são ciclos). O que eu realmente sei é que, no jogo de xadrez, o rei é importante, mas a rainha manda um pouco mais do que ele, quer em estratégia, importância e movimentos, quer em flexibilidade…

E agora perguntam: o que é que isto tem a ver com o artigo? Tem tudo! Mas vamos aos números, factos e comentários.

Veja-se, por exemplo, a nova administração Biden: dando um sinal de mudança (não faço juízos de valor, se boa ou má), assumiu publicamente, há uns dias, que deseja eletrificar toda a frota de veículos do governo federal. Outro exemplo é a Tesla, que vendeu em 2020 quase meio milhão de carros elétricos e espera aumentar esse número em 50% ao ano. Quase todos os fabricantes estão na luta por uma ‘fatia’ de mercado do ‘bolo’ chamado ‘mundo elétrico’ da mobilidade no transporte. 

Antes mesmo de uma eletrificação massiva, convém colocar a questão: de onde virá toda a energia para alimentar os VE (Veículos Elétricos)? Eles são, efetivamente, mais verdes no seu modelo atual de cadeia de consumo de energia, mas a adoção massiva que se pretende só pode fazer sentido como parte de uma reformulação de todo o sistema de energia.

Note-se que os últimos estudos (Estados Unidos e Europa) apontam para que eletrificar totalmente a frota atual ‘engole’, em termos de necessidade, o equivalente a toda a procura de energia. Eles movem-se a energia elétrica, mas convém questionar de onde vem toda essa energia, pois em algum momento ela terá de estar disponível para a procura futura.

Porque estudei (muito lá atrás!) termodinâmica, relembro de forma simples a sua segunda lei: para cada unidade de energia térmica que realmente se coloca em operação de algum equipamento, aproximadamente outras duas unidades acabam por ser desperdiçadas (perdidas) na forma de calor. Logo, a forma como não utilizamos energia é quase tão importante como a forma como a utilizamos. Já tinha pensado nisto?

Dos dados que recolhi, em termos macro no mundo, conclui-se que, em última análise, dois terços do consumo de energia primária são realmente desperdiçados, e cerca de um terço desse valor está relacionado com a indústria do transporte. São realmente números impactantes que nos passam despercebidos.

A queima de combustíveis fósseis dá origem a elevadas emissões de carbono, sendo a energia desperdiçada um possível indicador de danos colaterais no ambiente. Em contraste, as energias renováveis, ​​como a eólica, a solar e a hidroelétrica, acabam por absorver energia diretamente de fontes inesgotáveis. Embora uma pequena quantidade seja perdida na transformação, a grande maioria é utilizada. Deixo esta simples reflexão para futuros aprofundamentos de experts na matéria e em função de modelos matemáticos para simulação: se toda a frota de veículos atuais fosse eletrificada até 2030 e expandíssemos a geração eólica e solar a um ritmo acelerado, eliminando a energia do carvão como fonte primária, como ficaríamos? Quais seriam as consequências disso? 

O resultado poderia ser uma queda significativa nas emissões de carbono e, ao mesmo tempo, um sistema de balanço energético muito mais eficiente, embora deixe essas simulações e previsões para os especialistas. Uma das simulações a que tive acesso aponta, como hipótese, para um sistema com menos 13% de necessidade de entrada de energia, ou, por outras palavras, maior eficiência (ver ‘Lawrence Livermore National Laboratory, Otherlab and U.S. Department of Energy’).

Os custos da tecnologia baseados em fontes de energia renovável caíram bastante na última década, projetando-se uma queda adicional de 40% e 20% para as energias solar e eólica, respetivamente, até 2030. Além disso, tanto a energia eólica como a solar podem crescer mais rapidamente do que o que se projeta hoje, pois os preços continuam a cair. Outro dado relevante a adicionar ao ‘jogo’ é que os custos das baterias de iões de lítio caíram quase 90% desde 2010, podendo cair ainda mais 60% até 2030, com a massificação da tecnologia e a sua utilização.

Neste jogo do xadrez da energia, o principal dilema é que já existem, hoje, alternativas ao sistema de energia térmica que nos empurrou para emissões excessivas de carbono. E será que um novo modelo de disponibilidade e consumo de energia está em curso com a eletrificação massiva do transporte? A ‘rainha’ será ‘menos energia’ para as necessidades de consumo futuras? Existem, hoje, soluções para uma adoção mais rápida? Estaremos, na década que se iniciou em 2020, numa era de mudança ou numa ‘mudança de era’?