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O carro definido pelo software: rentabilizar os seus benefícios

O carro definido pelo 'software': rentabilizar os seus benefícios - Marc Amblard

Opinião de Marc Amblard

Iniciado pela Tesla, o conceito de software-defined car tornar-se-á rapidamente convencional, estando já a transformar profundamente a indústria. Os benefícios incluem a fácil implementação de novas funcionalidades, a melhoria contínua da experiência do utilizador, a criação de novos fluxos de receitas, a padronização do hardware, a manutenção mais fácil, campanhas de recolha mais baratas e, por último, uma menor necessidade de atualizações do modelo. 

Como é que a indústria está a preparar esta transição estratégica? Quanto do software será desenvolvido internamente pelos fabricantes automóveis e fornecedores de primeiro nível? Que importância terão as empresas tecnológicas?

As vantagens do software-defined car e a rápida alteração do paradigma de hardware

A Tesla apresentou o rumo para o ‘carro definido pelo software‘. Introduzido em 2012, o Model S continua a beneficiar de melhorias e atualizações regulares, que vão desde a autonomia ao desempenho da travagem, passando pelo interface de utilização e sistema de infoentretenimento. Além disso, todos os modelos Tesla estão equipados com hardware (sensores e computação) supostamente adequados para a condução autónoma de Nível 4 do futuro, enquanto o software é regularmente atualizado, de forma a dotá-lo, de forma incremental, de maior capacidade de autonomização.

Esta abordagem possibilitará também novos modelos de negócio, que conduzirão a receitas recorrentes. Compraremos um pacote para um dia na pista de corridas (por exemplo, potência, rigidez…), assentos aquecidos para uma viagem à neve, ou autonomia alargada e recursos de condução autónoma para viagens longas. O software será comercializado na ‘loja’ dos fabricantes, mas poderá ser desenhado por terceiros – a Apple fica com uma fatia de 30% na sua app store. O custo extra associado à implementação total do hardware em todos os veículos terá de ser compensado por menores custos de diversificação, inventários reduzidos em toda a cadeia até aos concessionários e, acima de tudo, novos fluxos recorrentes de receitas.

Esta revolução do software é acompanhada por uma profunda transformação da arquitectura eletrónica. A indústria está, de forma progressiva – e mais rapidamente do que o esperado – a transitar de dezenas de unidades de controlo por veículo – que não podem ser atualizadas –, por meia dúzia de computadores agnósticos em termos de software e atualizáveis remotamente. A dissociação de software vs. hardware (também conhecido como abstração) permite que este último seja mercantilizado, apesar de apenas a nível automotivo. Isto também permite que os intervenientes na área do software entrem no mercado automóvel, sejam eles gigantes tecnológicos ou startups.

Adicionalmente, o desenvolvimento eficiente de software resultará em ciclos de desenvolvimento/implementação mais curtos. Os construtores poderão evitar a criação de especificações muito detalhadas para o conjunto completo de características. Ao invés, lançarão regularmente novas versões de software para melhorar as funcionalidades existentes, fornecer novas ou corrigir erros, como a Tesla faz atualmente. O feedback dos consumidores será crítico para testar versões beta em grupos selecionados e melhorar continuamente a experiência do consumidor.

Desenvolvimento interno de software ou por terceiros: uma decisão estratégica

Assim que o hardware é uma abstração, o desenvolvimento do software reduz-se a dois blocos distintos. Com a sua estrutura modular, a camada de middleware (incluindo o sistema operativo) faz o interface entre o hardware agnóstico com as aplicações, e pode ser mercantilizado (por exemplo, através do AUTOSAR), uma vez que é transparente para os utilizadores. Inversamente, as aplicações são específicas para cada serviço. Podem contribuir de forma significativa para a diferenciação da marca, uma vez que estão frequentemente relacionadas com a experiência do utilizador. Ao todo, espera-se que o software para veículos autónomos atinja 300 a 500 milhões de linhas de código.

Os fabricantes estão a começar a adquirir separadamente o hardware (computadores de alto desempenho) e o software – o mercado de sistemas eletrónicos intensivos em software deverá ter uma Taxa de Crescimento Anual Composta (CAGR) de 15%, até 2030, de acordo com a Bosch. Para desenvolverem o seu software, os fabricantes enfrentam uma decisão estratégica fundamental, que pode ser reduzida a três opções: 

  1. desenvolver internamente uma parte significativa do software necessário para a maioria (ou todos) dos domínios, construindo um conjunto vasto de conhecimento especializado
  2. desenvolver internamente o software para um ou dois domínios profundamente diferenciadores, e especificar, subcontratar o desenvolvimento, integrar e validar o balanço das suas necessidades de software
  3. subcontratar todo o desenvolvimento de software e serviços a empresas especializadas, mantendo simultaneamente dentro de portas as tarefas de especificação, integração e validação de atributos

Opção 1: transformar os fabricantes automóveis em potências a nível de software

Esta opção de integração vertical assegura o nível mais alto de independência – e, provavelmente, um melhor desempenho financeiro a longo prazo. Contudo, requer uma profunda mudança cultural, uma agilidade significativa e capacidades massivas de desenvolvimento de software. Alguns fabricantes adotaram esta transformação e já começaram a implementar a organização adequada.

É necessário um de volume significativo para que os fabricantes justifiquem o envolvimento neste tipo de iniciativa, dada a necessidade de amortizar custos fixos de desenvolvimento elevados. Esta estratégia é a mais adequada para empresas como o Grupo Volkswagen ou a Toyota, que lançaram, respetivamente, as iniciativas Car.Software e Woven Planet/Arene. Por outro lado, esta abordagem pode ser mais facilmente justificada por fabricantes emergentes (como, por exemplo, a Rivian e a Lucid), apesar da sua menor dimensão, uma vez que o desenvolvimento de software é parte integrante da forma como o negócio é construído desde o início.

Criada em janeiro de 2020, a unidade de negócios Car.Software do Grupo VW está encarregue de desenvolver internamente 60% das necessidades de software do grupo até 2025, contra os atuais 10%. Preve-se que o grupo aumente para 10.000 os especialistas em software até 2025. No entanto, a estratégia revelou-se mais difícil de implementar do que o esperado. O VW ID.3, o crítico primeiro veículo elétrico produzido em série pelo Grupo, foi o primeiro a contar com o novo sistema operativo. O seu lançamento em 2020 foi adiado por vários meses devido a questões relacionadas com o software.

Opção 2: seletividade e agilidade no desenvolvimento de software

Os fabricantes irão, provavelmente, selecionar domínios estratégicos para os quais irão desenvolver software internamente. O sistema de gestão da relação entre o grupo propulsor elétrico e a bateria é um alvo provável de muitos fabricantes. Para outros domínios, como ADAS/condução autónoma ou infoentretenimento, os fabricantes irão seguramente subcontratar o desenvolvimento de software, mas o hardware será adquirido separadamente.

As empresas que procuram esta opção têm de se apoiar numa rede diversificada de parcerias com fornecedores de software, que disponibilizam conhecimento em domínios específicos, como eletrificação, condução autónoma ou infoentretenimento; ou conhecimento em funções específicas, nomeadamente conectividade, cibersegurança, edge computing ou serviços de armazenamento. No entanto, conhecimentos interno a nível de software continuam a ser críticos no quadro desta opção, pelo menos para especificar soluções, desenvolver arquiteturas de hardware e software, integrá-las e validá-las.

Desconfio que a Renault optou por esta opção e decidiu concentrar os seus esforços de desenvolvimento de software na eletrificação, tendo em conta o seu início precoce (o elétrico Zoe foi lançado em 2012). Paralelamente, foi o primeiro fabricante a constituir uma parceria com o Google Automotive Services (GAS) para a incorporação do sistema de infoentretenimento – o GAS foi desde então adotado pela Polestar e pela Ford. Recentemente, a Renault anunciou também o Software République, uma iniciativa para criar um ecossistema destinado a fornecer ao fabricante acesso a conhecimentos e competências fulcrais, como big data, Inteligência Artificial ou cibersegurança.

Opção 3: subcontratação completa do desenvolvimento de software

Esta opção será provavelmente relevante para os pequenos fabricantes com capacidade limitada para construírem, a nível interno, as competências necessárias ao desenvolvimento de software. O seu papel pode ser limitado à especificação de conjuntos de funcionalidade, bem como à integração e validação de sistemas completos. Estes podem igualmente ser os primeiros a adotar a alternativa seguinte.

Cooperação competitiva: licenciamento intersetorial

Está a surgir uma alternativa que se aplica a todas as opções: o licenciamento entre fabricantes, numa forma de ‘cooperação competitiva’. O Grupo VW anunciou que poderá disponibilizar o seu sistema operativo automóvel aos concorrentes. Da mesma forma, a Tesla indicou recentemente que está disponível para licenciar a sua tecnologia de condução autónoma a outros fabricantes. 

Esta abordagem favorece os licenciadores de duas formas. A primeira, porque permite manter a distância para a concorrência e preservar a liderança em termos de tecnologia/funcionalidades, assumindo que os custos desencorajam os outros fabricantes de criarem as suas próprias equipas de software. Em segundo lugar, as receitas de licenciamento são na sua maioria integradas nos resultados financeiros dos licenciadores, uma vez que o desenvolvimento de software é fundamentalmente um negócio de custos fixos.

Os fornecedores de primeiro nível também se estão a adaptar

À medida que os fabricantes procuram subcontratar o desenvolvimento do seu software, os fornecedores de nível 1 têm de decidir se adotam este negócio em rápido crescimento ou se o deixam às empresas de software. Com base na sua relação única com os fabricantes e em experiência existente a este nível, alguns fornecedores optaram pelo desenvolvimento do seu próprio software.

A Bosch está a reunir 17.000 associados para trabalharem na área de computação de hardware e software numa nova unidade denominada ‘Cross Domain Computing Solutions’. O objetivo principal passa por trazersoluções mais rápidas e eficientes para o mercado. 

Da mesma forma, a ZF criará um Centro Global de Software em 2021, que será responsável pelo desenvolvimento de sistemas de software para futuras arquiteturas, concentrando-se, em primeiro lugar, no middleware. No entanto, o grupo não pretende centralizar o desenvolvimento do software. A Continental pode contar, em parte, com a Elektrobit (adquirida em 2015). Com 3.500 funcionários, a empresa desenvolve middleware, aplicações e arquitetura de cloud, fornecendo também serviços de consultoria.

Empresas tecnológicas tornam-se parceiros estratégicos para os fabricantes 

Desde janeiro de 2021, o Grupo VW, a Bosch, a GM/Cruise e a Ford anunciaram parcerias com a Microsoft ou com a Google. Em todos estes casos, o construtor automóvel pretende aproveitar os serviços de computação em cloud e edge computing dos gigantes tecnológicos, assim como a sua experiência em Inteligência Artificial e análise de dados.

A parceria da Microsoft com a Bosch visa permitir atualizações remotas de software, combinando a cloud Azure e os módulos de software da Bosch. A solução será utilizada inicialmente em protótipos, até ao final de 2021. A colaboração entre o Grupo VW e a Microsoft visa desenvolver uma plataforma de condução automatizada baseada na cloud da Azure, para acelerar o crescimento da condução autónoma. A relação da General Motors e da Cruise com a Microsoft foca-se também nos veículos autónomos, impulsionando a Azure e a plataforma de edge computing. A Microsoft participou numa ronda de financiamento de dois mil milhões de dólares angariados pela Cruise.

Por parte da Google, o acordo com a Ford permitirá criar novas oportunidades de negócio, graças à análise de dados com base na cloud. A incursão da Google no setor automóvel não se limita à cloud. Como referido anteriormente, o Google Automotive Services assinou acordos relacionados com sistemas de infoentretenimento com a Renault, a Polestar e a Ford, que resultarão em serviços integrados de assistência e navegação, entre outros.

As empresas focadas no software automóvel também terão um papel progressivamente maior. Estas incluem a Elektrobit (parte do grupo Continental), a ETAS (parte da Bosch), a Wind River ou startups promissoras como a Sonatus, baseada em Silicon Valley.

Fotografia de Marc Amblard

Marc Amblard é mestre em Engenharia pela Arts et Métiers ParisTech e possui um MBA pela Universidade do Michigan. Radicado atualmente em Silicon Valley, é diretor executivo da Orsay Consulting, prestando serviços de consultoria a clientes empresariais e a start-ups sobre assuntos relacionados com a transformação profunda do espaço de mobilidade, eletrificação autónoma, veículos partilhados e conectados.

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