A irrupção de uma nova ordem
MG, BYD, NIO, Xpeng… Há apenas cinco anos, eram nomes exóticos para a maioria dos condutores europeus. Hoje, os seus carros elétricos circulam pelas ruas de Lisboa, Berlim ou Paris com números de vendas que começam a preocupar seriamente os fabricantes tradicionais.
Em 2025, a quota de mercado dos fabricantes chineses de automóveis elétricos na Europa já ronda os 6 %, o dobro do ano anterior. O crescimento não é pontual nem anedótico: é estrutural.
Perante este avanço, a União Europeia reagiu. Primeiro com uma investigação formal sobre possíveis subsídios estatais aos fabricantes chineses. Depois, com a aplicação de tarifas provisórias que poderão manter-se durante anos. Mas, para além da resposta política, a questão de fundo permanece: estamos perante uma concorrência desleal que ameaça a indústria europeia ou perante um estímulo que está a obrigar a Europa a acelerar?
Quotas, vendas e presença real: os dados
Em maio de 2025, os fabricantes chineses atingiram uma quota de 5,9 % do mercado europeu de automóveis novos, segundo a JATO Dynamics. Isto representa o dobro do valor registado em 2024. Só a BYD vendeu mais carros elétricos nesse mês do que a Tesla na Europa: 7.231 unidades contra 7.165. No primeiro trimestre do ano, os fabricantes chineses somaram mais de 330.000 unidades vendidas na Europa, segundo a Rho Motion — um crescimento de 36 % em relação ao mesmo período do ano anterior.
Em mercados como o espanhol, modelos como o MG4 ou o BYD Dolphin figuram entre os mais vendidos do ano no canal particular. No Reino Unido e na Alemanha, os números são ainda mais significativos. As projeções apontam para que os fabricantes chineses possam atingir os 10 % de quota europeia já em 2026, caso não sejam impostas novas barreiras.
Os subsídios chineses: prova de concorrência desleal?
A Comissão Europeia iniciou, em outubro de 2023, uma investigação ex officio sobre possíveis subsídios ilegais do governo chinês aos seus fabricantes de automóveis elétricos. Esta ação não exigia uma queixa prévia da indústria, o que revela a gravidade da situação aos olhos de Bruxelas. Em julho de 2024, após nove meses de investigação, a Comissão confirmou a existência de apoios substanciais:
- Empréstimos bonificados com garantia estatal
- Cedência de terrenos e zonas industriais em condições vantajosas
- Benefícios fiscais e isenções
- Apoio logístico e infraestruturas subvencionadas
- Subsídios à investigação, desenvolvimento e exportação
Estes apoios, embora não sejam necessariamente ilegais segundo a OMC, podem ser considerados distorcionantes caso causem prejuízo à indústria europeia — como concluiu a Comissão. Por esse motivo, desde outubro de 2024 estão em vigor tarifas compensatórias entre 17 % e 35 %, conforme o fabricante:
- BYD: 17 %
- Geely (Zeekr, Polestar, Lynk & Co): ~20 %
- SAIC (MG): até 35 %
- Tesla (Xangai): 7,8 %
A duração prevista destas tarifas é de cinco anos, com possibilidade de renovação. Além disso, a UE estuda a extensão das medidas a modelos produzidos em solo europeu por marcas chinesas, caso se prove que beneficiam de apoio estatal indireto.
A indústria europeia: tecnologia sólida, estratégia tardia
A Europa não está tecnologicamente atrás da China. Fabricantes como a Volkswagen, Renault, Stellantis, BMW ou Mercedes dispõem de plataformas modernas, software avançado, padrões de segurança superiores e uma experiência global de produto consolidada.
No entanto, existem diferenças evidentes em alguns pontos:
- Velocidade de implementação: as marcas chinesas apostaram cedo e de forma direta nos veículos 100 % elétricos. A Europa seguiu uma transição mais gradual (MHEV, HEV, PHEV).
- Escala e custos industriais: a China produz a custos mais baixos, com forte integração vertical (a BYD fabrica baterias, chips, motores e plataformas), o que reduz prazos e despesas.
- Software e interface de utilizador: nas gamas médias, as marcas chinesas oferecem experiências digitais mais completas, com atualizações OTA mais frequentes. A Europa está a recuperar terreno, mas com atraso.
- Dependência de baterias: a China domina 70 % da produção global. A Europa investe na Northvolt, ACC e outras gigafábricas, mas ainda sem escala suficiente.
Em suma: a Europa tem capacidade, mas tardou a ativar uma estratégia integrada. Agora, corre o risco de depender tecnologicamente de terceiros se não acelerar.
O consumidor no centro do tabuleiro
Neste confronto geoeconómico, o comprador europeu é muitas vezes o elemento esquecido. Os modelos chineses chegam com preços competitivos, boa autonomia e equipamento generoso — uma oportunidade real para acelerar a eletrificação a preços acessíveis.
Mas surgem dúvidas legítimas:
- Haverá pós-venda fiável e com continuidade?
- Será possível reparar fora dos canais oficiais?
- As tarifas vão impactar o preço final?
O dilema é evidente: como proteger a indústria europeia sem travar a transição ecológica nem penalizar o consumidor médio?
Conclusão: proteção, concorrência e visão estratégica
Os fabricantes chineses provaram que é possível construir veículos elétricos funcionais, competitivos e rentáveis. A Europa, com a sua tradição industrial, conhecimento técnico e capacidade humana, tem todas as ferramentas para competir. Mas precisa de agilidade, investimento coordenado e uma estratégia continental clara.
A investigação sobre os subsídios chineses não é apenas uma reação protecionista: é também um alerta. A Europa tem de decidir se quer continuar a ser um continente produtor de automóveis — ou apenas o mercado consumidor dos veículos dos outros.
A eletrificação não é apenas uma transição tecnológica. É uma batalha industrial, económica e estratégica. E já começou.