Este mês, a equipa da Green Future AutoMagazine entrevistou Luís Barroso, Presidente da Mobi.e, uma empresa pública que atua desde 2015 como rede de postos de carregamento de veículos elétricos de acesso universal.
Em 2021, o número de postos de carregamento da rede MOBI.E aumentou 66,5%, um recorde. Aumentou também o número de utilizadores e a energia fornecida pela rede. Certamente, o balanço do ano é positivo. Como é que foram atingidos estes números?
De facto, 2021 foi o melhor ano de sempre da mobilidade elétrica em Portugal e da rede Mobi.E, qualquer que seja o indicador que consideremos, apesar do contexto pandémico que vivemos. Estes números estão na trajetória planeada que nos vão levar ao cumprimento dos objetivos estabelecidos e aprovados pelo Governo no PNAC 2030, de atingirmos uma redução de gases de efeitos de estufa de 55% face a 1990 e a descarbonização total em 2050.
Que fatores considera terem sido reunidos para culminar neste crescimento tão significativo?
Houve uma multiplicidade de fatores que contribuíram para este sucesso, desde logo uma maior confiança dos cidadãos nesta forma de mobilidade e que começam a beneficiar das vantagens da utilização do modelo Mobi.E, um modelo integrador e pensado em facilitar o uso pelo utilizador, de tal forma que o regulamento europeu atualmente em discussão vem ao encontro da nossa solução, uma crescente oferta de motorizações elétricas, uma maior autonomia das viaturas, uma maior capacidade de resposta da rede Mobi.E, quer do sistema de gestão da rede, quer dos serviços prestados por comercializadores de energia e operadores de pontos de carregamento e uma política fiscal e de apoios consistente por parte do Governo, que vai desde os subsídios à aquisição de viaturas e aos carregamentos, a isenções fiscais à utilização por parte das empresas e ainda à política de alguns municípios de isenção parcial ou total do estacionamento.
A MOBI.E foi instrumental no desenvolvimento da rede piloto de postos de carregamento, entre 2015 e 2020, e continua a ter um papel fundamental na gestão da rede depois da entrada dos operadores privados, na fase plena do mercado. Qual é o balanço destes anos? Como é que a mobilidade elétrica se desenvolveu em Portugal?
Depois de uma falsa partida na primeira metade da década passada, que coincidiu, mais ou menos, com o período da Troika em Portugal, o Governo, no final de 2015, tomou medidas decisivas que potenciaram decisivamente o desenvolvimento da mobilidade elétrica. Começou por transferir para a esfera da Secretaria de Estado da Mobilidade a responsabilidade política da mobilidade elétrica, depois determinou para a MOBI.E objetivos muito concretos, recuperar a rede piloto que se encontrava praticamente abandonada e alargá-la a todos os municípios para depois a concessionar a operadores privados, de forma a criar um mercado regulado para a mobilidade elétrica na linha da legislação pioneira que tinha iniciado o processo em 2010. Para este sucesso, contribuiu também a forma como foi financiado o processo, através de cofinanciamento do POSEUR e de apoios financeiros à operação da rede Mobi.E através do Fundo Ambiental, que permitiram isentar os pagamentos de carregamentos.
Além do crescimento da infraestrutura de carregamento, os dados divulgados pelas associações do ramo automóvel apontam também para um crescimento recorde nas vendas de veículos eletrificados em 2021, com destaque para os elétricos a bateria. Considera que estamos já numa fase de consolidação da mobilidade elétrica em Portugal? Que peso e importância têm ainda os apoios e incentivos fiscais?
Os números são de facto animadores, mas estamos ainda numa fase muito embrionária do mercado, que apenas atingiu a fase plena há pouco mais de ano e meio. Note-se que o parque automóvel de veículos elétricos ainda representa apenas 2% do parque total, pelo que há um longo e desafiante caminho pela frente. Direi que, com o final de 2021, terminou o ciclo de construção do mercado e vamos entrar agora num novo ciclo, o da sua consolidação, que provavelmente irá durar até ao final da década. Obviamente que, durante este novo ciclo os apoios e incentivos fiscais manterão uma importância com tendência a diminuir à medida que o mercado se vai consolidando.

Cerca de 98% da área geográfica portuguesa já está coberta por postos de carregamento, mas estes estão sobretudo concentrados nas áreas urbanas, em particular no litoral? Onde é que falta chegar? Quais são as maiores dificuldades na instalação de pontos de carregamento em áreas mais remotas?
Neste momento faltam ligar postos apenas em 4 municípios, Caminha, Esposende e Terras de Bouro no Continente e Ponta do Sol na Madeira, o que irá acontecer nas próximas semanas. Contudo, é importante ter consciência, ainda não muito bem percebida por todos, que a rede pública de carregamento é complementar à possibilidade que o próprio modelo permite, por estar totalmente integrado com o setor da energia, dos utilizadores carregarem em espaços privados, como a sua casa ou o seu trabalho. Por outro lado, o mercado da mobilidade elétrica não foge às regras comuns dos mercados da oferta e da procura, pelo que nesta fase embrionária é normal que os agentes privados tenham atratividade por fazerem os seus investimentos em áreas mais povoadas, de forma a reduzirem o risco do retorno dos seus investimentos, que são também zonas onde a pressão ambiental é também mais premente e onde os efeitos da mobilidade elétrica são mais urgentes no caminho da descarbonização. Contudo, a MOBI.E, enquanto instrumento público, irá estar atenta e, se for necessário, intervirá pontualmente em zonas onde os privados não tenham ainda apetência ou que as autarquias não tenham capacidade para o fazer, de forma a garantir que a coesão territorial também se faz com a mobilidade elétrica.
Além de atuar como entidade gestora da rede nacional de carregamento, a MOBI.E tem desenvolvido ações no sentido de informar e esclarecer os cidadãos sobre o tema da mobilidade sustentável. Como é que descreveria o atual estado de (des)informação dos portugueses relativamente à mobilidade elétrica? Que mitos é que persistem?
Os tempos que vivemos com a proliferação das redes sociais e a mediatização da comunicação tornam muito fácil a propagação da má informação, do mexerico, do diz que disse e a mobilidade elétrica não é exceção. Antes pelo contrário, tratando-se de uma nova realidade, acaba por tornar-se uma boa fonte para a criação dos denominados mitos urbanos. Podia aqui invocar alguns como o da autonomia, da reciclagem das baterias ou mesmo do custo dos carregamentos, mas a MOBI.E deverá resistir à tentação de rebater as falsidades e as meias verdades que vão aparecendo, até porque não tem nem meios, nem capacidade para o fazer e que serviria para alimentar polémicas, e concentrar-se na informação pela positiva e credível, de forma a que qualquer pessoa quando quiser obter alguma informação credível sobre mobilidade elétrica recorra à MOBI.E. Isto é um processo que vai levar o seu tempo e muito trabalho, mas estou convicto que é o caminho. O ano passado lançámos um novo site que procuramos manter atualizado e em permanente desenvolvimento, pelo que convido todos os interessados a visitá-lo para esclarecer as suas dúvidas e se não encontrar a informação pretendida contacte-nos, de forma a podermos enriquecer os conteúdos de acordo com as necessidades do mercado.
Que desafios traz 2022 para a mobilidade elétrica em Portugal, e para a MOBI.E em particular? Quais são os desafios que se perspectivam para os anos subsequentes?
No ano passado batemos o recorde na instalação de tomadas, contudo se quisermos cumprir as metas traçadas necessitamos de fazer crescer até 2025, a infraestrutura de carregamento, a um ritmo médio que é o dobro do conseguido o ano passado. É um desafio enorme. Se tivermos em conta que este crescimento se deu, sobretudo, junto a grandes superfícies comerciais e em autoestradas, onde o processo de instalação é mais célere por se tratar de espaços privados de acesso público, então o desafio aumenta, pois, mais cedo ou mais tarde, a infraestrutura de carregamento pública terá de crescer em zonas habitacionais sem garagem ou parqueamento, pelo que o processo de licenciamento e instalação terá de tornar-se mais célere, no fundo teremos de introduzir um maior dinamismo ao processo de instalação e contrariar o estaticismo que é inerente ao setor da energia. A MOBI.E está neste momento a desenvolver uma nova plataforma de gestão da rede para responder ao crescimento da rede que se perspetiva, irá continuar a atuar como facilitador e parceiro de todas as entidades que já aderiram e são mais de 70, ou pretendam aderir à rede Mobi.E e continuaremos a focar-nos na comunicação como forma de credibilizar esta tecnologia.
A União Europeia definiu objetivos de descarbonização muito ambiciosos, que irão ter grande impacto no setor dos transportes, em particular no setor automóvel. Como é que perspetiva os próximos anos na ‘frente’ europeia?
A mobilidade elétrica é uma opção transversal à União Europeia e isso mesmo foi reforçado na última cimeira do clima ocorrida no ano passado em Glasgow. Os Governos dos diferentes países têm implementado ferramentas que incentivam a transição, mais ou menos célere, de acordo com as suas capacidades e os seus interesses próprios noutros setores concorrenciais. Neste momento, está em discussão um novo pacote regulamentar e que, no que diz respeito à mobilidade elétrica, Portugal está preparado uma vez que a proposta em discussão vai ao encontro das caraterísticas do modelo Mobi.E que assenta na integração de redes e em facilitar a experiência do utilizador independentemente de quem presta o serviço. Pelo que acredito que a tendência dos últimos anos se mantenha, ou seja, à medida que a pressão climática se acentue irão aumentar as medidas que proporcionam uma aceleração da transição para a mobilidade elétrica.
A mobilidade é porventura uma das áreas mais dinâmicas da atualidade, a nível de desenvolvimento tecnológico. A médio-longo prazo, o ecossistema de mobilidade deverá ser bastante diferente do atual e exigirá mudanças a nível das infraestruturas para acomodar, por exemplo, o âmbito alargado que se prevê para a mobilidade elétrica ou a mobilidade a hidrogénio. De que forma é que podemos começar a preparar este futuro?
Parece-me que o sucesso do novo ciclo da consolidação exige uma maior integração da mobilidade elétrica no setor dos transportes, ao nível do planeamento da infraestrutura de carregamento, da operação, da política tarifária e até nos meios de pagamento, deixando ao setor da energia a segurança das instalações e a produção da matéria-prima que se pretende cada vez mais verde. Por exemplo, recentemente Barcelona determinou o objetivo de atingir até 2025 a quota modal de 65% no transporte público, o que acredito será uma tendência futura das cidades europeias. O próprio Plano de Recuperação e Resiliência aponta para o reforço das redes de transportes públicos no nosso País, o desenvolvimento da mobilidade suave e da mobilidade partilhada são também objetivos que se pretendem atingir como medidas de descarbonização. Estes objetivos terão necessariamente de influenciar o planeamento do transporte individual e com ele o planeamento da infraestrutura de carregamento, pelo que não será possível definir programas racionais de investimento na mobilidade elétrica, quer ela seja movida, para já, a eletricidade, quer ela seja também movida, no futuro, a hidrogénio, sem uma integração consistente nas políticas da mobilidade e transportes.
