Por Carolina Caixinha
O Green Future AutoMagazine conversou com Filipe Duarte dos Santos, Professor de Física, jubilado da Universidade de Lisboa e atual presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável, sobre a situação mundial e as perspectivas da sua evolução no quadro da recente crise da COVID-19.
De 1999 a 2002 foi Diretor do Centro de Física Nuclear da Universidade de Lisboa, tendo sido agraciado no ano 2005 com o grau de Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada. É também coordenador de múltiplos projetos nacionais e internacionais nas áreas do ambiente e desenvolvimento sustentável.
Inevitavelmente, os últimos meses foram impactados pela pandemia da COVID-19. Na sua opinião, qual o maior ensinamento que podemos extrair desta calamidade?
As pandemias acontecem ao longo da História e algumas conduziram a situações humanitárias catastróficas. Uma das primeiras sobre a qual temos alguns dados foi a peste de Justiniano que ocorreu entre nos anos de 541 e 542, provocou 30 a 50 milhões de mortos e provavelmente contribuiu para acelerar a queda do Império Romano.
A peste negra, a mais devastadora, provocou a morte de 30 a 50% da população da Europa, ocorreu entre 1347 e 1351, teve origem na bactéria Yersinia pestis, alojada em ratos e que chegou aos humanos por meio de moscas infetadas. A peste e muitas outras doenças infeciosas, tais como a gripe (gripe espanhola, gripe de Hong Kong e outras), hantavírus, cólera, raiva, febre-amarela, malária, ébola, dengue, doença de Lyme, leptospirose, varíola e muitas outras são zoonoses, ou seja doenças infeciosas cujos agentes – bactérias, fungos, vírus, helmintos – são transmitidos dos animais para os seres humanos.
“O aparecimento da pandemia da COVID-19 insere-se numa tendência de aumento do número de zoonoses que estão a surgir no mundo, especialmente na Ásia e África.”
A análise de uma base de dados de 335 doenças infeciosas emergentes surgidas no período 1940-2004 revelou que 60,3% são zoonoses, e nestas, 71,8% tiveram origem em animais selvagens e mostram tendência de crescimento (Jones, 2018). No último século, uma média de dois novos vírus por ano saltarão dos animais que constituem os seus hospedeiros normais para os humanos (Woolhouse, 2012).
A caracterização do genoma do vírus responsável pela COVID-19, o SARS-CoV-2, foi publicada na revista científica Nature em 3 de fevereiro deste ano (Zhou, 2020), tendo-se verificado que é 79,6% idêntico ao SARS-CoV, que causou a epidemia de gripe em Hong-Kong, no ano de 2003, e 96% idêntico ao de um coronavírus encontrado em morcegos Rhinolophus affinis da província de Yunnan, na China.
É muito provável que o SARS-CoV tenha passado de morcegos pertencentes ao mesmo género para civetas do Himalaia ou outros mamíferos vendidos para alimentação humana nos mercados de animais selvagens do Sul da China. A evolução do SARS-CoV-2 desde os morcegos até ao homem é, por enquanto, desconhecida.
Por que razão as zoonoses estão a aumentar? A invasão, destruição ou degradação de habitats e a ingestão indiscriminada de animais selvagens, especialmente mamíferos, estabelece novas formas de contacto com as pessoas que potenciam a oportunidade dos seus vírus e bactérias se adaptarem e penetrarem no corpo humano, causando novas doenças infeciosas.
O principal ensinamento que podemos extrair da atual pandemia de COVID- 19 é a necessidade de alterar a nossa relação com a biosfera, procurando travar a sua destruição e degradação sistemática. Se não conseguirmos coletivamente, em todo o mundo, seguir este caminho, é provável que novas epidemias e pandemias causadas por zoonoses continuem a surgir de forma cada vez mais frequente e com efeitos potencialmente devastadores.
Um artigo recente, publicado na revista científica Science, considera que para travar o aparecimento crescente de zoonoses, devemos diminuir a desflorestação das florestas tropicais e subtropicais e recomeçar a reflorestação.
Antes da pandemia havia uma tendência mundial, ao nível dos altos dirigentes e líderes políticos, no sentido de progredirmos para um mundo mais verde, sustentável e amigo do ambiente. Considera que a crise económica mundial pode ter influência negativa nesta tendência?
As preocupações com a degradação do ambiente, a sobre-exploração dos recursos naturais e as alterações climáticas são relativamente recentes e começarem a ter maior visibilidade política apenas na segunda metade do século XX. Porém, não existe ainda a nível mundial o empenhamento social, económico e político para adotar um modelo de desenvolvimento sustentável de médio e longo prazo.
Devido à pandemia de COVID-19, o mundo ficou confrontado com uma crise social e económica gravíssima que vai afetar sobretudo os países mais frágeis e os menos desenvolvidos, e que levará alguns anos a ser superada. A atitude prevalecente é dar prioridade aos problemas das pessoas e passar para segundo plano as preocupações ambientais.
Tal atitude é errónea porque as pessoas não se podem separar do ambiente. As pessoas e o ambiente formam uma unidade que não se consegue quebrar. A prova disso é a COVID-19. A pandemia veio de animais selvagens e, devido à promiscuidade entre eles e as pessoas resultante da destruição sistemática dos seus habitats, em especial das florestas, como acontece especialmente nas regiões tropicais e subtropicais, o número de zoonoses está a aumentar perigosamente.
Estamos pois perante uma encruzilhada. Se não travarmos a degradação ambiental, a sobre-exploração dos recursos naturais e a alteração do clima, as zoonoses vão ser cada vez mais frequentes, a sustentabilidade económica será mais difícil de atingir porque os recursos naturais tornam-se mais caros, os eventos meteorológicos extremos serão cada vez mais devastadores, com consequências graves, como é o caso dos fogos florestais e rurais em Portugal e em outras regiões do mundo como, por exemplo, a Califórnia e a Sibéria.
Em conclusão, a atual crise económica mundial é principalmente uma consequência da insustentabilidade do modelo global de desenvolvimento, e a sustentabilidade tem três componentes essências que não é possível separar – social, económica e ambiental. Se não dermos atenção à componente ambiental, as crises económicas mundiais serão recorrentes.
Temos verificado, por um lado, que a qualidade da água, do ar e o nível de poluição tem diminuído, de um modo geral, mas, por outro, temos verificado que a ‘qualidade’ do lixo se degradou, sendo que parte das lixeiras a céu aberto nos mostram realidades como lixos hospitalares (máscaras, luvas, seringas, etc.). Pode comentar que eventuais efeitos nefastos existem para o meio ambiente e para a saúde em geral, e o que fazer para combater este flagelo?
Há que distinguir aquilo que se passa nos países com economias avançadas, como é o caso de Portugal, do que se passa nos países cujas economias estão ainda em fase de desenvolvimento. Nestes últimos países os problemas de poluição (do ar, água, solos e do oceano, especialmente as zonas costeiras) e dos resíduos sólidos urbanos são frequentemente graves.
“Em termos de conservação do ambiente e de diminuição da poluição, Portugal tem beneficiado muito do facto de pertencer à União Europeia desde 1986 (nessa época, Comunidade Económica Europeia) e de aplicar as políticas de ambiente da UE.”
No que respeita aos resíduos sólidos urbanos e aos resíduos de forma geral, a forma de procurar resolver o problema é adotar e praticar a economia circular baseada em processos cíclicos ‘do berço ao berço’, em lugar de processos lineares de extração, produção e descarte, ou seja, ‘do berço ao túmulo’. É pois necessário reduzir, reciclar e reutilizar. Afinal, é aquilo que faz a biosfera com grande mestria ao desconhecer os conceitos de descarte e lixo.
Se não se procurar diminuir a poluição do ar, água e solos, os impactos negativos na saúde humana irão continuar a agravar-se. Uma das principais causas de morte precoce no mundo é a poluição atmosférica nas áreas urbanas e industriais. Afeta sobretudo os países menos desenvolvidos mas também as zonas urbanas dos países europeus, incluindo Portugal.
Em 2008, a Organização Mundial da Saúde advertiu que as emissões provenientes das centrais a carvão provocam uma poluição atmosférica que é responsável por um excesso global de mortalidade estimado em cerca de um milhão de pessoas por ano.
Os países mais desenvolvidos já iniciaram a sua revolução no sentido de substituir os carros a combustível fóssil por carros movidos a energia elétrica. Considera que a COVID-19 será um acelerador desta tendência ou, por outro lado, face a fatores económicos, poderemos verificar uma retração desta tendência? E em Portugal o que podemos esperar a nível de carros elétricos e das respetivas infraestruturas?
A descarbonização da economia mundial, que inclui a transição energética dos combustíveis fósseis para as energias renováveis, já se iniciou mas o seu ritmo é ainda muito lento. Sem essa descarbonização não é possível travar a mudança climática que nos traz um clima cada vez mais adverso e perigoso. A desaceleração da economia mundial provocada pela pandemia de COVID-19 diminuiu muito a procura de energia e consequentemente o uso dos combustíveis fósseis. O consumo de energia elétrica baixou e, nas economias avançadas, o uso do carvão deixou de ser competitivo face às energias renováveis e ao gás natural.
Em Portugal, a EDP adiantou a data de encerramento da central térmica a carvão de Sines para janeiro de 2021. É provável que, devido à COVID-19, o pico de consumo global do carvão tenha sido ultrapassado, o que são boas notícias para a saúde humana e para o clima.
No que respeita aos combustíveis fósseis líquidos a situação é mais complexa. O consumo de petróleo baixou bastante mas a indústria é muito poderosa e tudo fará para se manter rentável. O que irá acontecer ao petróleo e ao gás natural vai depender muito da duração da pandemia de COVID-19 e da duração e intensidade da crise económica mundial que está a provocar. As boas notícias são o aumento significativo do número de veículos elétricos no mundo.
Porém, a percentagem de SUV (sport utility vehicle ou veículos todo-o-terreno) no conjunto de veículos com motores de combustão interna que são adquiridos está a aumentar, o que aumenta o consumo global de gasolina e gasóleo, dado que os SUV consomem mais combustível do que os outros veículos com motor de combustão interna.
De acordo com a Agência Internacional de Energia, a segunda causa principal do aumento das emissões globais dos gases com efeito de estufa, responsáveis pelas alterações climáticas, é o grande aumento à escala mundial da compra de SUV cada vez mais potentes e mais consumidores de combustível. No Reino Unido, um relatório recente intitulado Upselling Smoke considera que, para atingir os objetivos de descarbonização da economia compatíveis com o Acordo de Paris sobre as alterações climáticas, será necessário banir os anúncios de veículos todo-o-terreno com emissões médias de dióxido de carbono (CO2) superiores a 160 g de CO2 por km, e automóveis com comprimento superior a 4,8 m.
Portugal tem um plano ambicioso de expansão dos veículos elétricos. A transição dos veículos de combustão interna para os veículos elétricos depende muito dos incentivos governamentais que forem dados à compra de veículos elétricos e da consciencialização da sociedade para a necessidade de acelerar a transição energética, de modo a conseguir controlar as alterações climáticas.
A descarbonização da economia depende em primeiro lugar de as pessoas estarem conscientes do que está em causa e quererem ou não fazê-la.
