Por Carolina Caixinha
O Green Future AutoMagazine entrevistou Alexandra Gomes, investigadora portuguesa radicada em Londres, responsável pela coordenação da análise sócio-espacial em vários projetos na LSE Cities, referência internacional no estudo das cidades contemporâneas. Ensina também em módulos de planeamento urbano na Bartlett School of Planning da University College London (UCL), onde se encontra a concluir o Doutoramento: ‘Uma análise multi-sensorial do espaço público urbano’.
Tem, desde 2008, desenvolvido o seu percurso académico e profissional fora de Portugal. Foi um objetivo de carreira ou foi uma oportunidade que surgiu? Que balanço faz destes mais de dez anos?
Nunca foi um objetivo meu sair do país. Saí por razões familiares, sempre a pensar que era temporário, e acabei por ficar. Quando cheguei, em 2008, no meio da crise económica, foi muito difícil ter uma primeira oportunidade de emprego. No entanto, a partir da primeira, a segunda apareceu mais rápido. De qualquer forma, foi a FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia portuguesa, com uma bolsa de Doutoramento, que me permitiu entrar para o meio académico, onde estou neste momento.
O meu balanço é bastante positivo, mas tem melhorado com o tempo. Tudo mudou com o início do meu Doutoramento na Bartlett School of Planning da UCL, onde fiz bons amigos, onde aprendi muito e ainda dou umas aulas. E agora, na London School of Economics, na LSE Cities, onde estou a investigar cidades por todo o mundo, e sinto que aprendo algo quase todos os dias.
Em Portugal, quando estava no antigo CESUR do Instituto Superior Técnico, agora parte do Citua, também fazia investigação e aprendi bastante, mas sobretudo sobre Portugal. Aqui, a diferença é que a investigação não tem fronteiras e o acesso ao financiamento, ainda que difícil, é mais fácil que em Portugal.
O que faz um analista de dados na sua área? Qual a importância dessa análise para as regiões, a nível do desenvolvimento sustentável?
Eu faço análise sócio-espacial comparativa de cidades. Através de investigação, mapas, e outras formas de visualização, tento entender como o ambiente construído influencia a sociedade, cultura e ambiente. Como dizemos na LSE Cities, como as cidades e as pessoas interagem num mundo em rápida urbanização. Para saber o que mudar na política pública, temos de saber mais sobre a situação atual das cidades, e a análise sócio-espacial das cidades permite-nos fazer esse tipo de avaliação. No entanto, a importância da análise depende muito dos objetivos do projeto. Se, às vezes, o objetivo é usar dados existentes para criar evidência e mostrar o que se passa numa determinada cidade, outras vezes ajudamos a criar dados que permitam uma análise posterior.
Num dos principais projetos que temos, o Urban Age, tentamos, através de mapas e visualizações comparativas, analisar as diferenças na evolução das cidades, explorando fatores demográficos, económicos, de transporte, ambientais e de governança urbana. O Urban Age tem mais de dez anos de existência e permitiu acumular conhecimento e dados sobre cidades espalhadas pelo mundo inteiro. O desafio aqui é ter acesso a dados comparativos em cidades com escassez de dados – por exemplo, cidades africanas – ou em cidades em que os dados existem, mas não são disponibilizados, como, por exemplo, no Médio Oriente.
Como analista de dados, passo mais tempo a recolher dados, ou a criá-los, do que a analisar ou produzir resultados gráficos. O que não seria possível sem a colaboração de investigadores ou técnicos e políticos locais. Sem dados não há análise, e sem análise o conhecimento académico não avança e o planeamento e a política pública não se adaptam à realidade. Na LSE Cities, o uso de mapas, visualizações e fotografia são importantes porque as imagens são os meios de comunicação mais eficientes e acessíveis. Por isso, muitas das nossas publicações são muito visuais.
No Reino Unido, o investimento público em projetos urbanos obedece a preocupações ambientais e de sustentabilidade? Existe algum exemplo que queira partilhar?
Não posso falar sobre o Reino Unido, porque pouco sei do que se passa fora de Londres. Londres perde muito em termos de sustentabilidade por ser uma cidade de grandes desigualdades sociais. A rede de transportes ferroviária, que cobre quase toda a cidade, tem preços muito elevados, tal como a habitação, o que força a maioria dos que por cá vivem a viver longe do seu local de trabalho, e partilhar casa ou mesmo o quarto. E, embora com muitos espaços verdes, devido ao clima chuvoso, tem poucos espaços públicos e pouca cultura de rua, à parte da zona mais central e turística da cidade. Muitos dos espaços públicos criados nos últimos anos são na realidade privados e controlados permanentemente por seguranças privados. E a habitação social foi substituída por habitação ‘acessível’, cujos preços estão longe de ser acessíveis. Por fim, o Green Belt de Londres [zonas rurais circundantes, onde é instituída uma política de resistência à urbanização], um dos maiores suportes de sustentabilidade da cidade, até há pouco tempo estava ameaçado pela necessidade de expansão da própria cidade.
Em paralelo, o mais recente desenvolvimento urbano tenta seguir um sistema TOD – Transit Oriented Development –, que se traduz em bairros com maior densidade populacional e maior acessibilidade urbana e de transportes. A Congestion Charge que existe desde 2003, uma portagem ‘invisível’ que taxa a entrada de automóveis em Londres, reduziu consideravelmente as entradas, os acidentes rodoviários e a poluição urbana. Enquanto a mais recente Low Emission Zone tenta encorajar os veículos pesados a diesel mais poluentes que circulam em Londres a tornarem-se mais limpos. O investimento em ciclovias nos últimos dez anos, com a rede de bicicletas partilháveis e o estacionamento de bicicletas seguro, Cycle hangar, também ajudou a melhorar a qualidade de vida na cidade. Agora, com o impacto da COVID na vida quotidiana, parece existir ainda mais vontade política para melhorar a caminhabilidade nas ruas de Londres.
Se Londres tem a ensinar em termos de sustentabilidade urbana, também tem muito a aprender.
Londres é uma cidade em permanente construção. Foto: Alexandra Gomes
Considera que, em relação a outros países, Portugal está longe de se afirmar como um país sustentável?
Sustentável é um termo muito abrangente. E eu não sei o suficiente sobre o que se passa neste momento em Portugal e nos países mais ‘sustentáveis’ para poder comparar e fazer uma afirmação dessas. Mas sei que se tem feito muito em Portugal para melhorar a sustentabilidade na sua vertente ambiental, com as energias renováveis, com a mobilidade ativa – veja-se o exemplo do investimento em ciclovias em Lisboa – e o encorajamento à mudança para veículos elétricos, com incentivos fiscais e de infraestrutura. Portugal atingiu já, este ano, o quinto lugar, na Europa, na percentagem de venda de carros elétricos.
Mas também vejo que há muito a fazer em termos de reutilização e reciclagem de recursos, por exemplo. No entanto, sinto que os maiores problemas de Portugal estão no edificado, cuja construção não é energeticamente eficiente, e no uso dominante do carro. Por causa do carro, temos menos passeios – os obstáculos obrigam a andar na estrada –, temos menos transportes públicos urbanos, e menos ainda em termos regionais e nacionais. Enquanto a rede ferroviária no Reino Unido liga as grandes cidades, em Portugal temos cidades como Lisboa e Leiria que só estão ligadas via autocarro, por exemplo. Isto sem falar das deficientes ligações ferroviárias internacionais, onde Portugal parece estar ainda longe do resto da Europa. Em termos sociais e económicos, Portugal, como muitos outros países europeus – e o Reino Unido também não é exceção –, deveria lutar por menores desigualdades sociais, muitas vezes promovidas por processos de gentrificação urbana.
A sua experiência em projetos de investigação à escala global permite-lhe ter uma visão abrangente das diferentes geografias. Quais os aspetos ambientais mais relevantes dos estudos urbanos que realizou em países em desenvolvimento que gostaria de destacar?
Acho que a principal lição da minha experiência é que necessitamos de crescer ou desenvolver as nossas cidades melhor, para uma melhoria climática. A ideia de uma cidade compacta, conectada e resiliente emerge com maior importância na literatura académica e política de cidades, já que em 2030 está previsto que 70% da população mundial esteja a viver em meios urbanos. O que significa que, se nada se fizer, o impacto das cidades nas alterações climáticas será ainda maior.
As cidades existem para eliminar os custos de transporte de pessoas, bens e ideias, de acordo com Edward Glaeser [economista norte-americano], e daí que a forma de planear a cidade e a sua rede de transportes – para carros ou transportes públicos – produza efeitos de longo prazo. Mas vou tentar indicar alguns exemplos de projetos de investigação da LSE Cities (todos em colaboração com investigadores locais) que demonstram que as cidades são sistemas complexos de interação entre variáveis como pessoas e transportes, mas também edifícios, ambiente e outros.
Quando investiguei Hong Kong, verificámos que era uma cidade-estado hiperdensa, de usos mistos, transportes energeticamente eficientes e confiáveis, e onde o trabalho está, em média, a vinte minutos da habitação. No entanto, o rácio entre a sua população e o território disponível para desenvolvimento leva a que a dimensão média da habitação social para uma pessoa seja de cerca de 8 m2, e a altura, proximidade e tipologias de edifícios, mesmo que energeticamente eficientes, produzam claros efeitos de ilha de calor [aumento localizado da temperatura de uma área urbanizada, que contrasta com as menores temperaturas das áreas circundantes].
Adis Abeba, a capital etíope, ainda tem a maior parte da sua população, 54%, a andar a pé, e 31% de transportes públicos. É uma cidade com ruas cheias de vida por ter um desenvolvimento, em termos de transportes, muito diferente de muitos países desenvolvidos, por razões económicas. A questão aqui será de como manter estes níveis baixos de motorização, com o emergente crescimento económico e desenvolvimento urbano que esta cidade está a ter.
Por outro lado, no Kuwait, um dos estados mais ricos do mundo, 99% dos seus cidadãos prefere guiar a andar a pé e, por consequência, os passeios não existem. Autoestradas rasgam o deserto e criam barreiras entre os diferentes bairros da cidade. Para além do clima, com temperaturas extremas, a falta de um sistema de transportes de qualidade, e o extremo zonamento e níveis de dispersão da cidade também não ajudam a reduzir os níveis de transporte motorizado individual. O ambiente edificado, com casas individuais de tamanho considerável, não está, no entanto, adaptado ao clima, o que resulta em baixa eficácia energética.
Também no Kuwait, num dos meus últimos projetos, ainda não publicado, concluímos que o planeamento urbano, o desenho urbano e o comportamento individual estão intimamente relacionados, na forma como condicionam a falta de condições de uso e qualidade do espaço público urbano. E que questões de governação urbana, como responsabilidades sobrepostas e políticas de espaço público limitadas, têm dificultado o dinamismo das ruas associado à vida na cidade.
Por fim, o exemplo de Masdar, uma cidade dita sustentável, uma Smart City, criada de raiz em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, é um exemplo que demonstra que uma cidade inteligente não funciona necessariamente. Os edifícios têm materiais adaptados ao clima, as ruas têm sistemas de ventilação próprios, e são desenhadas por forma a criar sombras, juntamente com um sistema de transportes públicos elétricos – cápsulas de quatro pessoas – que viajam e distribuem os viajantes por baixo da cidade. No entanto, Masdar encontra-se longe do centro da cidade, e fora da continuidade urbana, e sem transportes rápidos de ligação a Abu Dhabi. Ou seja, tem tido dificuldade em atrair pessoas e empresas, e aqueles que lá vivem ou trabalham, guiam e têm um carro estacionado num enorme parque exterior. As poucas lojas que lá existem são caras e a cidade tem tido dificuldade em atrair residentes e empresas… pelo que só parte do projeto está construída.
O que considera urgente modificar, para tornar o planeta mais verde e sustentável? Que comportamentos podemos ter, conjuntamente, os mais de dez milhões de portugueses, para tornarmos possível o futuro que queremos? Estas medidas podem ser tomadas ao nível de cada país? Ou só poderemos ter um mundo melhor com medidas à escala global?
Eu acho sempre que todos nós podemos ajudar a influenciar o mundo. Mesmo que algumas medidas precisem de ser globais, podemos sempre começar e dar o exemplo. Reutilizar e reciclar são medidas que todos nós podemos tomar. Reduzir o consumo e o desperdício, de comida a outros produtos, e mudar o nosso comportamento em termos de mobilidade, dando preferência ao transporte público e às bicicletas, por exemplo. E para aqueles que precisam mesmo de um carro por razões pessoais ou profissionais, então a mudança para um carro elétrico seria algo a considerar.
Depois, medidas relativas a uma construção sustentável, energias renováveis, reciclagem, tratamento de lixos e águas residuais, ou em termos de políticas de apoio às indústrias, serão a nível nacional e internacional aquelas que farão mais sentido. Mas, em tudo isto, pode ser preciso pressionar, e por isso ativistas e grupos de pressão – grupos de moradores, de ciclistas, etc. –, podem ter aqui um papel fundamental de colaboração com os governos locais na melhoria das nossas cidades. Para além de uma melhor integração de políticas a diferentes escalas e de uma colaboração dos diferentes níveis de governação nacionais e mesmo internacionais, entre cidades, especialmente ao nível da União Europeia.
Isto sem querer tirar importância ao papel da academia, na investigação e consultoria e no incentivo a uma melhor consciencialização ambiental e de redução da pegada ecológica. Na Universidade, por exemplo, estamos a tentar reduzir o número de voos que fazemos para trabalho de campo, conferências e ensino por questões ambientais, para redução da pegada de carbono. No entanto, isso vai implicar um esforço no reforço do apoio local, que muitas vezes passa por aumentar substancialmente as redes de contactos existentes.
Vias segregadas para autocarros e bicicletas, em Londres. Foto: Alexandra Gomes
A mobilidade elétrica está em grande crescimento em Portugal. Como vê o seu desenvolvimento no Reino Unido?
Também aqui só posso falar do que se passa em Londres.
O DLR – Docklands Light Railway, que é um metro de superfície automatizado e elétrico, é um dos investimentos em termos de transportes que mais me surpreendeu pela positiva. Liga os dois principais centros económicos de Londres e transporta diariamente milhares de pessoas, sem alguns dos problemas que o metro ou os comboios têm, nomeadamente os atrasos constantes e problemas de manutenção.
Em 2018, o Mayor de Londres lançou a sua Estratégia de Transportes, com a ambição de tornar a rede de transporte de Londres numa rede carbono zero até 2050, apoiando a mudança para tecnologias de emissão zero, como carros e autocarros elétricos. Em 2019, Londres tinha mais de 20.000 veículos elétricos e 1.700 táxis elétricos, e a rede de autocarros atingiu os 400 autocarros elétricos. O que, não sendo um número significativo numa cidade como Londres, é uma das maiores frotas elétricas da Europa.
As bicicletas elétricas surgiram em Londres há uns anos, mas a relação preço-distância não compensa e não tinham, na altura, planos de preço anuais. Temos de perceber que a escala de Londres não é a de Lisboa, e como a maior parte das pessoas não vive na zona 1, o preço de ir entre casa e trabalho torna-se demasiado caro. Note-se que só o Metro de Londres tem seis zonas e que a zona 1 tem o tamanho aproximado de Lisboa. Para distâncias curtas, sendo Londres plana, as bicicletas não elétricas promovidas pelos TFL – Transport for London compensam mais.
Uma das importantes inovações tecnológicas, não necessariamente, mas dominantemente elétrica, prende-se com o facto de a mobilidade ser cada vez mais partilhada: carros, bicicletas e mesmo táxis – por exemplo, a Uber – que têm revolucionado a forma como nos movemos em Londres. Ao mesmo tempo, a tecnologia, agora reforçada como consequência da COVID-19, tem reduzido o movimento e a necessidade de encontros físicos para existir socialização.
Como consequência, não posso deixar de realçar o impacto que a COVID-19 está a ter na forma como estamos a viver a cidade. E a importância que irá ter no futuro do desenvolvimento urbano, onde provavelmente haverá mais trabalho a partir de casa, com um claro impacto nos transportes públicos e privados. E onde oportunidades poderão aparecer para um maior crescimento do uso de bicicletas elétricas e de modos de transporte elétricos partilhados.
DLR, o metro de superfície londrino. Foto: Alexandra Gomes
Como definiria a cidade ideal?
A cidade ideal é difícil de definir. Se aprendi algo em investigação, é que podemos criar um espaço físico ideal e esse espaço não ser confortável para aqueles que o usam.
De qualquer forma, a minha cidade ideal está muito próxima daquilo que são as maiores cidades portuguesas. Uma cidade de bairros, de escala média, com densidade populacional média, proximidade ao mar ou a um rio. De malha orgânica, mas também com áreas de construção mais moderna e energeticamente eficiente, com mistura de usos, e principalmente com cultura do espaço público: esplanadas, espaços para estar, jardins urbanos. Seria uma cidade com transportes públicos metropolitanos eficientes e integrados – em termos de rede, gestão e bilhetes–, poucos carros e, se possível, elétricos e partilhados, e muito mais bicicletas e peões nas ruas. E claro, com mais ligações regionais e internacionais ferroviárias rápidas. Mas também uma cidade de menos desigualdades sociais, e com acesso a habitação, cultura, educação, e serviços básicos de saúde.
Ao contrário de alguns países onde fiz investigação, acho que em Portugal temos potencial para ter várias cidades ideais, temos a base e as ferramentas para fazer das nossas cidades uma cidade ideal. Não precisamos de criar nada de novo, apenas temos de adaptar o existente e construir o novo melhor, por forma a tornar o que já temos mais socialmente inclusivo e ambientalmente amigável. E até temos um clima moderado que ajuda muito.
Alexandra Gomes é investigadora na LSE Cities. Tem experiência em investigação em diferentes geografias e escalas de análise, desde a Europa e Médio Oriente ao Sudeste Asiático e África. Desde 2010, ensina na Bartlett School of Planning da UCL, onde se encontra a concluir o Doutoramento. Mestre em Estudos de Desenvolvimento pelo ISCTE; Licenciada (pré-Bolonha) em Engenharia do Território pelo Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa. Em Portugal, trabalhou também em ordenamento do território, mobilidade sustentável e análise espacial no CESUR – Instituto Superior Técnico, e na Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo (CCDR LVT).
Projetos e publicações académicas. Twitter: @xpgomes3
As opiniões da entrevistada são da sua responsabilidade e não representam necessariamente as posições da LSE Cities.