António Gonçalves Pereira
Presidente da Ecomood Portugal
No Decreto-Lei n.º 102-B/2020 de 9 de Dezembro pode ler-se, logo no sumário: “atendendo à proliferação de veículos equiparados a velocípedes que podem circular em pistas de velocípedes e em pistas mistas de velocípedes e peões, e à sua extrema perigosidade na partilha de espaço”.
Na EcoMood Portugal não poderíamos estar mais frontalmente contra esta formulação. As bicicletas, trotinetas, skates e afins são de “extrema perigosidade” na partilha dos espaços?! Na realidade, é com base neste prossuposto falacioso que a actual lei obriga crianças de 11 anos e outros pacatos ‘peões com rodas’, a circular maioritariamente no meio de carros e camiões, em constante risco de vida.
A insustentabilidade de “o justo pelo pecador”
“Mas há por aí tanto inconsciente a andar de bicicleta e trotineta, não respeitam nada, não têm cuidado nenhum”, ouve-se com alguma insistência. E é verdade. Ainda assim, nada que se compare com o número de ‘inconscientes’ que andam de automóvel nas estradas. E não é por isso que se proíbem todos os automóveis na estrada, certo?
Sim, temos graves pechas nesse campo. Mas essa é uma questão cultural, de cidadania, de educação, não especificamente de mobilidade. É preciso criar melhores cidadãos rapidamente, apostar no desembrutecimento da população, na pedagogia, na sensibilização, no ensino e incentivo a melhores práticas sociais, em todos os campos. Todos! E também, claro está, no campo da mobilidade, da partilha dos espaços, da postura na via pública. Proibir todos de se locomoverem de formas ambientalmente mais sustentáveis por haver quem as use de forma errada ou, até, perigosa, não é um bom caminho. Desincentiva a utilização desses veículos, contribui para o atraso na tão urgente descarbonização.
No nosso sistema cada vez mais se está a legislar com base na proibição. E na coima. Ou seja, temos cada vez mais um Estado que nos proíbe quase tudo, para depois ter receitas quando, quase inevitavelmente, transgredimos. O que cria uma dualidade, uma desonestidade de Estado, cada vez mais dependente das receitas das transgressões dos seus cidadãos. Leis-armadilha que foram criadas para que não se cumpram. E o Estado agradece, para ter essas receitas.
E assim chegamos a leis como a mencionada, insustentável tanto ambiental como socialmente, proibindo e multando os hábitos de sempre dos cidadãos, demonizando o que deveria regulamentar. E quando temos que agir ilegalmente para sermos mais sustentáveis ou melhores cidadãos, ou até para não corrermos risco de vida, algo está muito mal.
Ciclistas ou peões com rodas
Para facilitar e encurtar, vou chamar bicicletas a todos os veículos de mobilidade suave. Mesmo se nesta lei há também alguns erros graves relacionados com os veículos motorizados de micromobilidade, como a ilegalização de quase todos os que já existem em circulação, devido à sua potência. Ao contrário do que acontece com os automóveis, por exemplo, que têm potências e velocidades máximas livres, com consequências muito mais devastadoras. Mas isso fica para um próximo texto. Uma causa de cada vez.
Ciclistas, a 30 ou 40 à hora, seja em exercício físico ou em deslocação, deverão circular na estrada. Estamos de acordo. Ou, muito cuidadosamente, nas ciclovias. Já os restantes utilizadores de bicicleta, com as devidas cautelas, deverão poder andar… EM TODO O LADO!
Fonte da imagem: Internet
Eu? Mesmo não havendo ainda qualquer ciclovia, aqui na zona desloco-me sempre de bicicleta. Até para ir ao supermercado e regressar com dois sacos no guiador. O que, nesse caso, resulta em 400 metros em vez de 1.200, evitando rotundas e ruas agitadas. Ando, portanto, da mesma forma que sempre o fiz, desde criança: pelo caminho mais curto, a corta-mato, passeio, caminho ou estrada. Sempre com cuidado e dando prioridade aos peões sem rodas, quando os há. Cinquenta anos a dar ao pedal, zero acidentes. Ou, até, incidentes.
Sim, há que distinguir ciclistas de peões com rodas. Vamos a casos concretos: utilizemos a Marginal de Cascais, ou Estrada Nacional 6, e sua zona envolvente. Porque é a minha realidade mais próxima e um excelente exemplo da inadequação desta lei. E porque, como em muitos outros locais, a oferta de transporte público rodoviário é, no mínimo, pobre, muito limitada em trajectos e horários, e opera numa óptica de rentabilidade e não de verdadeiro serviço púbico.
A Marginal é, portanto, a nossa ‘lenta via rápida’, única alternativa à autoestrada para circulação entre concelhos. E, dada a localização da A5, em muitos casos é mesmo a única opção, já que, pelo interior das localidades, o trânsito, cruzamentos, rotundas e bloqueios são demasiados. Portanto, se aplaudimos a redução dos limites de velocidade noutros locais, nesta estrada, até que haja alternativas, para que haja algum escoamento, é necessário que os limites de velocidade se mantenham, até porque tem condições para isso, entre os 50 e os 70 km/h. Apesar de muitos, como em todo o lado, circularem bem acima desses limites. Mas este é também um belo caminho de passeio, tanto a pé como de bicicleta. O único para deslocação até às praias para os residentes da zona. As ciclovias são inexistentes. Há até alguns locais que poderiam funcionar como vias partilhadas pedonais e cicláveis mas que, vá-se lá entender, são proibidos para as bicicletas.
Foto: António Gonçalves Pereira
E assim temos os ciclistas, como eu, nas suas licras e bicicletas desportivas, fazendo o seu exercício na estrada, entre os frequentemente apressados carros e camiões. E depois temos todos os outros utilizadores de bicicleta, como eu também, a partilharem os passeios com os peões. Que, salvo raríssimas excepções, se habituaram a esta partilha mais racional e segura, cedendo passagem, pedindo até desculpa quando não se apercebem da aproximação de um destes peões com rodas. Mais racional e segura mas, incompreensivelmente, ilegal. Ou corremos risco de vida ou somos criminosos. Para o legislador, todos os utilizadores de bicicleta teriam que estar a circular na estrada, entre os stressados ‘inconscientes’ de carro e camião. Quem não teve que aprender o código da estrada, a senhora que ainda nem consegue tirar uma mão do guiador, a criança de 11 ou 12 anos, o idoso, a família de quatro ou cinco bicicletas de todas as idades, o pai com o bebé na cadeirinha. Todos!
Portanto, segundo esta lei, peões e bicicletas de dez quilos a partilhar espaços é péssimo, perigosíssimo. Bom mesmo é misturar bicicletas com carros de 200 cavalos e camiões de dez toneladas. Ou seja, antes arriscar a perda da vida de um utilizador de bicicleta, mesmo de 11 anos, do que um arranhão num peão.
Felizmente que nem os agentes da autoridade concordam, na sua maioria, com esta lei, pelo que só costumam intervir quando apanham um dos tais ‘inconscientes’. E mesmo os demais apenas pedem para desmontar, sem mais represálias. Porque também lhes parecerá contraproducente proibir e castigar financeiramente a circulação da bicicleta quando tanto se apregoa a sua utilização.
“Se era para correr risco de vida ou para andar a pé, então não trazia a bicicleta. Ou não vinha, ou vinha de carro.”
Estou consciente que mesmo entre alguns dirigentes associativos de promoção da bicicleta há quem tenha uma opinião contrária a esta, sobretudo por acreditarem que, desta forma, conseguem pressionar mais eficazmente para que se reduza generalizadamente os limites de velocidade dos automóveis e que se acelere a construção de ciclovias, eliminando até a circulação automóvel em muitos locais. Mas, mesmo que se defenda esse caminho, e defendo, entretanto há a realidade actual de Portugal, ainda na pré-história da holandesa, por exemplo. E, como tenho constatado por muitos exemplos próximos, que deixaram de andar de bicicleta exactamente por estas razões, e/ou porque não querem correr o risco de circular fora da lei, não será certamente com estas regras que conseguiremos incentivar a tão desejável e apregoada utilização mais generalizada e frequente da bicicleta.
O autor não escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico