Opinião de Marc Amblard
É de esperar que a crise que atravessamos tenha um forte impacto na indústria automóvel. A significativa quebra de vendas nos últimos meses e a previsão de uma demorada recuperação económica acelerou as tendências pré-crise na área da mobilidade. A mudança em direção à condução autónoma sofrerá um impacto significativo, ao passo que a tendência para a eletrificação poderá, em geral, abrandar marginalmente – e até acelerar em alguns países.
Há dezoito ou vinte e quatro meses, a indústria em geral reconheceu que os Veículos Autónomos (VA) não seriam implementados transversalmente em múltiplas aplicações no início de 2020, como era previamente antecipado. Simplesmente, a tecnologia não amadureceu de forma suficientemente rápida. Muitos projetos foram enormemente reduzidos ou adiados indefinidamente – por exemplo, os serviços de ride hailing autónomo da Waymo em Phoenix e da Cruise em São Francisco –, ou até mesmo cancelados – e.g. a condução autónoma de nível 3 no Audi A8.
As startups começaram a ter dificuldades para angariar mais financiamento, com algumas a optar por se afastarem de aplicações de nível 4 em favor de outras utilizações para a sua tecnologia. Esta tendência foi aparente em empresas de todo o espectro dos VA, tanto a nível de hardware como de software. Os principais intervenientes têm-se envolvido crescentemente em acordos de cooperação entre pares ou com empresas tecnológicas, de forma a terem acesso à tecnologia com exposição reduzida ao risco – a título de exemplo, as parcerias Hyundai-Aptiv ou Ford-Argo-Volkswagen.
A crise tem impacto no financiamento de VA e na sobrevivência das startups
Os fornecedores de equipamentos estão a ajustar a sua alocação de capital, priorizando projetos que tenham um impacto positivo nas suas receitas ou lucros, nos próximos dois ou três anos. Contudo, as empresas que têm realmente uma perspetiva de longo prazo, como a Toyota, continuam a investir em ambiciosos projetos plurianuais, dentro de portas ou com parceiros.
Algumas empresas anunciaram a saída de algumas parcerias para entrarem em novos acordos. A Daimler e a BMW congelaram a sua colaboração na área dos VA, mas a Daimler trabalha agora com a Nvidia (apesar de os objetivos desta nova parceria serem diferentes). A Volvo e a Veoneer estão a desmantelar a Zenuity, a sua joint venture 50-50 – o fabricante fica com a atividade de software para VA e a Veoneer garante os recursos ligados aos ADAS (Advanced Driver Assistance Systems) –, com a Volvo a entrar numa nova parceria com a Waymo. As empresas estão a aperfeiçoar as suas estratégias de colaboração para melhor as adaptarem às suas necessidades e meios.
Um número crescente de startups estão a atingir os limites do seu espaço de financiamento, sem novos fundos à vista – as startups angariam normalmente fundos para cerca de dezoito meses. Algumas companhias encerraram, como a Starsky Robotics, startup de camiões autónomos.
O capital de risco e as firmas de private equity, que acumularam, em geral, grandes reservas, tendem agora a utilizar a sua ‘pólvora seca’ para reforçar o investimento nas empresas mais promissoras dos seus portfólios, ao invés de efetuarem novos investimentos. Em virtude disso, as startups que se encontram a dar os primeiros passos terão dificuldades muito maiores para se ‘erguerem’. O resultado será uma concentração mais saudável, mas que suprimirá o aparecimento de novas ideias. Recentemente, esta tendência beneficiou a Waymo, que angariou este ano 3 mil milhões de dólares.
Este controlo financeiro criou oportunidades do lado das aquisições, beneficiando startups com tecnologia avançada e/ou equipas fortes. A Zoox, com a sua ambiciosa missão de desenvolver um veículo, uma plataforma de condução autónoma e um serviço de ride hailing, estava alegadamente a experimentar dificuldades para angariar fundos adicionais além dos mil milhões de dólares já recebidos. O projeto tornou-se demasiado ambicioso. A Zoox acaba de ser comprada pela Amazon por 1.3 mil milhões de dólares, um desconto significativo face à prévia avaliação de 3 mil milhões. De forma similar, a Caterpillar adquiriu a Marble Robot, que havia angariado dez milhões de dólares para desenvolver um robot de entregas; e a Cruise acabou de comprar a Astyx, uma startup da área dos radares, da qual a ZF controlava anteriormente 45%.
Menos participantes conduzirão o esforço para o nível 4
Muitas startups que fornecem ferramentas básicas para a indústria de VA – e.g. aquelas que trabalham em LiDAR, indexação e anotação de imagens, localização e mapeamento ou simulação – estão a sofrer. Há simplesmente demasiadas (por exemplo, mais de cinquenta na área de LiDAR), para um número decrescente de potenciais clientes. As startups mais maduras já concentram grande parte da pool de investimento – por exemplo, a startup de dados de aprendizagem e validação Scale, que angariou cem milhões de dólares, com uma avaliação de 1.4 mil milhões em meados de 2019.
A startups com ‘menos sorte’ estão a orientar-se rapidamente para gerarem receitas que lhes permitam estender a sua existência. Focam-se em utilizações alternativas para as suas tecnologias, quer na área da mobilidade terrestre como em outros setores. Aplicações alternativas das tecnologias incluem o transporte rodoviário de mercadorias, robots de entregas que utilizam os passeios, veículos de condução automática, drones, automação de veículos agrícolas ou de extração mineira, vigilância de espaços públicos, agrimensura e topografia, etc. – a Level Five Supplies identificou cem aplicações para a tecnologia de LiDAR.
Similarmente, as empresas irão provavelmente canalizar alguns recursos de I&D, que trabalham atualmente no desenvolvimento do nível 4 de mobilidade autónoma, para sistemas ADAS/nível 2. Esta tecnologia é madura e pode assim contribuir para a obtenção de receitas no curto prazo. A maior parte destes fabricantes manterão uma equipa de desenvolvimento de nível 4 para se manterem na vanguarda do progresso. Isto é o caso das empresas com estratégias de fast follower, como a PSA.
Trator industrial autónomo da Charlatte e Navya
As prioridades da condução autónoma alteraram-se
Confrontamo-nos com uma combinação de dois fatores-chave na implantação de VA. Em primeiro lugar, atingir a maturidade tecnológica revelou-se muito mais difícil do que o antecipado, em particular para a aplicação central definida incialmente, i.e. ride hailing autónomo em áreas urbanas. Em segundo lugar, a crise da COVID-19 reforçou significativamente o comércio eletrónico, o que irá resultar em mais transportes terrestres, especialmente na last mile.
Por que ordem é que será provável a implementação da tecnologia de VA? Isto dependerá da maturidade tecnológica para cada aplicação, das infraestruturas e do contexto regulatório.
Um conjunto de aplicações menos visíveis oferecerão à indústria benefícios fáceis no curto prazo, uma vez que são menos exigentes do ponto de vista tecnológico. Estas incluem robots de logística industrial, ou veículos autónomos para cargas locais como, por exemplo, a movimentação de reboques em centros logísticos ou transporte de bagagens em aeroportos. Aqui, estes veículos operam num ambiente privado, o que torna as coisas mais fáceis. Apesar de este conjunto de aplicações não resultar em mercados de grande dimensão, estão já a acontecer. A EinRide é disto um bom exemplo.
A próxima vaga de implementação de VA estará provavelmente orientada para as entregas de middle e last mile, onde a velocidade é limitada e um comportamento suave de condução não é um aspeto crítico. Adicionalmente, algumas destas implementações podem servir exclusivamente percursos pré-definidos, para os quais o sistema pode ser otimizado. A Gatik e a Neolix são bons exemplos destas aplicações. Um aspeto essencial será o fator negócio. Recorde-se que a entrega de refeições é atualmente um negócio que gera perdas monetárias.
De seguida, veremos provavelmente camiões autónomos orientados para condução em auto-estrada. Vários camiões de fabricantes e startups têm-se focado neste tipo de aplicação, e.g. a TuSimple. Mais recentemente, algumas das grandes startups de VA, que priorizavam anteriormente a automação de automóveis de passageiros, aumentaram o seu interesse no transporte rodoviário autónomo de mercadorias. Este é o caso da Waymo e, mais recentemente, da Aurora Innovation, que agora parece colocar o transporte de mercadorias à frente dos veículos de passageiros. A ausência de condutor, combinada com a grande taxa de utilização, irá provavelmente contribuir para um fator negócio mais favorável.
À medida que a tecnologia amadurece, o custo dos sensores e plataformas de computação desce, e aprendizagens significativas são adquiridas com as implementações iniciais de VA, chegará o tempo de uma implementação significativa de shuttles autónomos (além das soluções de way-points existentes atualmente) e de serviços de ride hailing. Nessa altura, poderemos também observar a tecnologia de nível 4 a ser implementada em veículos de passageiros de gama alta, para uso privado. Aí, a tecnologia de nível 2/2+ ter-se-á tornado largamente implantada no mercado.
Conclusão
A crise atual terá impacto no desenvolvimento e implantação de VA em múltiplas vertentes. Uma consolidação do setor é inevitável – e saudável –, e permitirá a emergência de participantes mais fortes. O transporte de mercadorias será o objetivo principal a médio prazo, enquanto mais esforços serão aplicados na implementação de soluções ADAS/nível 2 na área dos veículos de passageiros. Os fundadores de startups na área dos VA necessitarão de uma proposta de valor muito convincente para angariarem os seus primeiros financiamentos!
Marc Amblard é mestre em Engenharia pela Arts et Métiers ParisTech e possui um MBA pela Universidade do Michigan. Radicado atualmente em Silicon Valley, é diretor executivo da Orsay Consulting, prestando serviços de consultoria a clientes empresariais e a ‘start-ups’ sobre assuntos relacionados com a transformação profunda do espaço de mobilidade, eletrificação autónoma, veículos partilhados e conectados. Publica mensalmente uma newsletter relacionada com a revolução da mobilidade.