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Green Future-AutoMagazine

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Opinião

Coluna de Opinião - Marc Amblard

A crise baralha as contas nos Veículos Autónomos

Opinião de Marc Amblard

É de esperar que a crise que atravessamos tenha um forte impacto na indústria automóvel. A significativa quebra de vendas nos últimos meses e a previsão de uma demorada recuperação económica acelerou as tendências pré-crise na área da mobilidade. A mudança em direção à condução autónoma sofrerá um impacto significativo, ao passo que a tendência para a eletrificação poderá, em geral, abrandar marginalmente – e até acelerar em alguns países.

Há dezoito ou vinte e quatro meses, a indústria em geral reconheceu que os Veículos Autónomos (VA) não seriam implementados transversalmente em múltiplas aplicações no início de 2020, como era previamente antecipado. Simplesmente, a tecnologia não amadureceu de forma suficientemente rápida. Muitos projetos foram enormemente reduzidos ou adiados indefinidamente – por exemplo, os serviços de ride hailing autónomo da Waymo em Phoenix e da Cruise em São Francisco –, ou até mesmo cancelados – e.g. a condução autónoma de nível 3 no Audi A8.

As startups começaram a ter dificuldades para angariar mais financiamento, com algumas a optar por se afastarem de aplicações de nível 4 em favor de outras utilizações para a sua tecnologia. Esta tendência foi aparente em empresas de todo o espectro dos VA, tanto a nível de hardware como de software. Os principais intervenientes têm-se envolvido crescentemente em acordos de cooperação entre pares ou com empresas tecnológicas, de forma a terem acesso à tecnologia com exposição reduzida ao risco – a título de exemplo, as parcerias Hyundai-Aptiv ou Ford-Argo-Volkswagen.

A crise tem impacto no financiamento de VA e na sobrevivência das startups

Os fornecedores de equipamentos estão a ajustar a sua alocação de capital, priorizando projetos que tenham um impacto positivo nas suas receitas ou lucros, nos próximos dois ou três anos. Contudo, as empresas que têm realmente uma perspetiva de longo prazo, como a Toyota, continuam a investir em ambiciosos projetos plurianuais, dentro de portas ou com parceiros.

Algumas empresas anunciaram a saída de algumas parcerias para entrarem em novos acordos. A Daimler e a BMW congelaram a sua colaboração na área dos VA, mas a Daimler trabalha agora com a Nvidia (apesar de os objetivos desta nova parceria serem diferentes). A Volvo e a Veoneer estão a desmantelar a Zenuity, a sua joint venture 50-50 – o fabricante fica com a atividade de software para VA e a Veoneer garante os recursos ligados aos ADAS (Advanced Driver Assistance Systems) –, com a Volvo a entrar numa nova parceria com a Waymo. As empresas estão a aperfeiçoar as suas estratégias de colaboração para melhor as adaptarem às suas necessidades e meios.

Um número crescente de startups estão a atingir os limites do seu espaço de financiamento, sem novos fundos à vista – as startups angariam normalmente fundos para cerca de dezoito meses. Algumas companhias encerraram, como a Starsky Robotics, startup de camiões autónomos.

O capital de risco e as firmas de private equity, que acumularam, em geral, grandes reservas, tendem agora a utilizar a sua ‘pólvora seca’ para reforçar o investimento nas empresas mais promissoras dos seus portfólios, ao invés de efetuarem novos investimentos. Em virtude disso, as startups que se encontram a dar os primeiros passos terão dificuldades muito maiores para se ‘erguerem’. O resultado será uma concentração mais saudável, mas que suprimirá o aparecimento de novas ideias. Recentemente, esta tendência beneficiou a Waymo, que angariou este ano 3 mil milhões de dólares.

Este controlo financeiro criou oportunidades do lado das aquisições, beneficiando startups com tecnologia avançada e/ou equipas fortes. A Zoox, com a sua ambiciosa missão de desenvolver um veículo, uma plataforma de condução autónoma e um serviço de ride hailing, estava alegadamente a experimentar dificuldades para angariar fundos adicionais além dos mil milhões de dólares já recebidos. O projeto tornou-se demasiado ambicioso. A Zoox acaba de ser comprada pela Amazon por 1.3 mil milhões de dólares, um desconto significativo face à prévia avaliação de 3 mil milhões. De forma similar, a Caterpillar adquiriu a Marble Robot, que havia angariado dez milhões de dólares para desenvolver um robot de entregas; e a Cruise acabou de comprar a Astyx, uma startup da área dos radares, da qual a ZF controlava anteriormente 45%.

Menos participantes conduzirão o esforço para o nível 4

Muitas startups que fornecem ferramentas básicas para a indústria de VA – e.g. aquelas que trabalham em LiDAR, indexação e anotação de imagens, localização e mapeamento ou simulação – estão a sofrer. Há simplesmente demasiadas (por exemplo, mais de cinquenta na área de LiDAR), para um número decrescente de potenciais clientes. As startups mais maduras já concentram grande parte da pool de investimento – por exemplo, a startup de dados de aprendizagem e validação Scale, que angariou cem milhões de dólares, com uma avaliação de 1.4 mil milhões em meados de 2019.

A startups com ‘menos sorte’ estão a orientar-se rapidamente para gerarem receitas que lhes permitam estender a sua existência. Focam-se em utilizações alternativas para as suas tecnologias, quer na área da mobilidade terrestre como em outros setores. Aplicações alternativas das tecnologias incluem o transporte rodoviário de mercadorias, robots de entregas que utilizam os passeios, veículos de condução automática, drones, automação de veículos agrícolas ou de extração mineira, vigilância de espaços públicos, agrimensura e topografia, etc. – a Level Five Supplies identificou cem aplicações para a tecnologia de LiDAR.

​Similarmente, as empresas irão provavelmente canalizar alguns recursos de I&D, que trabalham atualmente no desenvolvimento do nível 4 de mobilidade autónoma, para sistemas ADAS/nível 2. Esta tecnologia é madura e pode assim contribuir para a obtenção de receitas no curto prazo. A maior parte destes fabricantes manterão uma equipa de desenvolvimento de nível 4 para se manterem na vanguarda do progresso. Isto é o caso das empresas com estratégias de fast follower, como a PSA.

Trator industrial autónomo da Charlatte e Navya​

As prioridades da condução autónoma alteraram-se

Confrontamo-nos com uma combinação de dois fatores-chave na implantação de VA. Em primeiro lugar, atingir a maturidade tecnológica revelou-se muito mais difícil do que o antecipado, em particular para a aplicação central definida incialmente, i.e. ride hailing autónomo em áreas urbanas. Em segundo lugar, a crise da COVID-19 reforçou significativamente o comércio eletrónico, o que irá resultar em mais transportes terrestres, especialmente na last mile.

Por que ordem é que será provável a implementação da tecnologia de VA? Isto dependerá da maturidade tecnológica para cada aplicação, das infraestruturas e do contexto regulatório.

Um conjunto de aplicações menos visíveis oferecerão à indústria benefícios fáceis no curto prazo, uma vez que são menos exigentes do ponto de vista tecnológico. Estas incluem robots de logística industrial, ou veículos autónomos para cargas locais como, por exemplo, a movimentação de reboques em centros logísticos ou transporte de bagagens em aeroportos. Aqui, estes veículos operam num ambiente privado, o que torna as coisas mais fáceis. Apesar de este conjunto de aplicações não resultar em mercados de grande dimensão, estão já a acontecer. A EinRide é disto um bom exemplo.

A próxima vaga de implementação de VA estará provavelmente orientada para as entregas de middle e last mile, onde a velocidade é limitada e um comportamento suave de condução não é um aspeto crítico. Adicionalmente, algumas destas implementações podem servir exclusivamente percursos pré-definidos, para os quais o sistema pode ser otimizado. A Gatik e a Neolix são bons exemplos destas aplicações. Um aspeto essencial será o fator negócio. Recorde-se que a entrega de refeições é atualmente um negócio que gera perdas monetárias.

De seguida, veremos provavelmente camiões autónomos orientados para condução em auto-estrada. Vários camiões de fabricantes e startups têm-se focado neste tipo de aplicação, e.g. a TuSimple. Mais recentemente, algumas das grandes startups de VA, que priorizavam anteriormente a automação de automóveis de passageiros, aumentaram o seu interesse no transporte rodoviário autónomo de mercadorias. Este é o caso da Waymo e, mais recentemente, da Aurora Innovation, que agora parece colocar o transporte de mercadorias à frente dos veículos de passageiros. A ausência de condutor, combinada com a grande taxa de utilização, irá provavelmente contribuir para um fator negócio mais favorável.

À medida que a tecnologia amadurece, o custo dos sensores e plataformas de computação desce, e aprendizagens significativas são adquiridas com as implementações iniciais de VA, chegará o tempo de uma implementação significativa de shuttles autónomos (além das soluções de way-points existentes atualmente) e de serviços de ride hailing. Nessa altura, poderemos também observar a tecnologia de nível 4 a ser implementada em veículos de passageiros de gama alta, para uso privado. Aí, a tecnologia de nível 2/2+ ter-se-á tornado largamente implantada no mercado.

Conclusão

A crise atual terá impacto no desenvolvimento e implantação de VA em múltiplas vertentes. Uma consolidação do setor é inevitável – e saudável –, e permitirá a emergência de participantes mais fortes. O transporte de mercadorias será o objetivo principal a médio prazo, enquanto mais esforços serão aplicados na implementação de soluções ADAS/nível 2 na área dos veículos de passageiros. Os fundadores de startups na área dos VA necessitarão de uma proposta de valor muito convincente para angariarem os seus primeiros financiamentos!

Fotografia de Marc Amblard

Marc Amblard é mestre em Engenharia pela Arts et Métiers ParisTech e possui um MBA pela Universidade do Michigan. Radicado atualmente em Silicon Valley, é diretor executivo da Orsay Consulting, prestando serviços de consultoria a clientes empresariais e a ‘start-ups’ sobre assuntos relacionados com a transformação profunda do espaço de mobilidade, eletrificação autónoma, veículos partilhados e conectados. Publica mensalmente uma newsletter relacionada com a revolução da mobilidade.

Artigo de Opinião Luís Barroso

A importância da Mobilidade Sustentável

Luis Barroso, CEO da MOBI.E, S.A.

Cada vez se fala mais de mobilidade sustentável, mas o que é que significa, e que impacto tem na sociedade e no ambiente?

A nossa actividade tem sido determinante na criação das condições necessárias para o lançamento da mobilidade elétrica em Portugal e no contributo para o cumprimento das metas ambientais que nos comprometem a todos.

A promoção da Mobilidade Elétrica e a redução do impacto ambiental são dois indicadores da qualidade de vida das populações e do desenvolvimento económico, social e político de um país, e são dimensões estruturantes na definição do papel e da nossa identidade.

“A mobilidade elétrica é um importante contributo para a mobilidade sustentável e para o aumento da eficiência energética na área dos transportes.”

Espera-se que este contributo seja cada vez maior, à medida que a autonomia dos veículos elétricos aumenta e, por conseguinte, um número crescente de utilizadores adere a esta nova forma de mobilidade.

Vivemos num contexto económico global, no qual o pilar da sustentabilidade tem uma relevância ímpar através da descarbonização, a qual passa pela aposta política a nível mundial na mobilidade elétrica. O Estado português não é exceção e irá continuar a apostar na nossa empresa, para o ajudar neste caminho. No âmbito do Plano de Estabilidade Económica e Social, o Governo aprovou para a MOBI.E, S.A., em junho passado, um novo pacote de investimentos, superior a 3 milhões de euros e que passa, não só, pela instalação de novos postos, agora ultra-rápidos e na criação de parques urbanos de carregamento, como também no desenvolvimento de uma nova plataforma que permita gerir com maior eficiência um sistema que fatalmente irá contar com um crescente número de utilizadores e de agentes de mercado.

Por outro lado, a centralização do sistema no utilizador, a interoperabilidade da rede de carregamento e a igualdade de oportunidades de acesso ao mercado são marcas diferenciadoras do nosso modelo para a mobilidade elétrica que devem ser preservadas, as quais, nós, enquanto instrumento público deveremos saber garantir, sem que tal constitua um fator de estagnação do modelo e sim as bases sólidas e consensuais que promovam ativamente a sua evolução, contribuindo para dar vida a um futuro mais sustentável para todos.  

Mas voltemos um pouco atrás no tempo, para se perceber o nosso papel neste processo:

Quando fomos adquiridos pelo Estado, em 2015, a rede piloto de postos de carregamento para a mobilidade elétrica inicialmente pensada em 2010, não só não havia sido concluída como estava abandonada e extremamente degradada. A aposta então era para recuperarmos e finalizarmos a rede piloto, ao mesmo tempo que fomos designados como a Entidade Gestora da Rede de Mobilidade Elétrica (EGME) nos termos previstos na legislação.

A mudança de Governo no final desse ano trouxe um novo impulso e tornou mais ambiciosa a aposta na mobilidade elétrica, determinando, não só, a conclusão, como a expansão a todos os municípios do Continente da rede piloto de postos de carregamento.

De então para cá com o apoio financeiro do POSEUR e do Fundo Ambiental, temos conseguido assegurar a concretização da rede piloto, o funcionamento da nossa rede e a sua utilização gratuita durante a fase de instalação. Desde 2016, o investimento público foi superior a 10 milhões de euros, tendo-se criado uma infraestrutura de carregamento piloto constituída por 39 postos de carregamento rápido e mais de 650 postos de carregamento normal, enquanto se conseguiu uma poupança nas emissões de CO2 na atmosfera de mais de 14 000 ton.

Note-se que foram anos de transição do setor da mobilidade elétrica muito exigentes, nos quais tivemos de assegurar um conjunto alargado de funções, mas que mesmo assim, com o esforço e empenho dos nossos profissionais, nunca desistimos e permitiu-nos, não só concretizar a rede piloto, como desempenhar o nosso papel enquanto EGME, credibilizando o nosso modelo junto dos diversos agentes de mercado, como o demonstram os 18 Comercializadores de Energia para a Mobilidade Elétrica (CEME), os 58 Operadores de Pontos de Carregamento (OPC) que permitem a um número cada vez maior de Utilizadores de Veículos Elétricos (UVE) confiarem na nossa rede; atualmente, são mais de 9 000. Estes fatores contribuem ainda para a especialização tecnológica de empresas portuguesas enquanto fabricantes de postos de carregamento criando postos de trabalho e valor. 

Ao mesmo tempo foi possível trabalhar na modernização do sistema com a revisão do Regulamento da Mobilidade Elétrica (RME) que a ERSE, após consulta pública, veio publicar no final do ano passado, bem como aumentar as funcionalidades do nosso sistema, procurando dar resposta à crescente exigência quer dos agentes de mercado, quer dos utilizadores, como o roaming nacional e internacional, bem como o denominado pagamento ad hoc dos carregamentos, os quais deverão passar a ser disponibilizados durante o último trimestre deste ano.

Podemos assim, concluir que a mobilidade elétrica atingiu uma solidez que não permitirá novos retrocessos e que, tal só foi possível, porque o Governo assumiu-o como um desígnio nacional, tendo o Estado sabido constituir um instrumento público como a MOBI.E, S.A. para intervencionar com determinação, salvaguardando ao mesmo tempo, o crescimento do negócio privado em torno da mobilidade elétrica.

Por entre profecias e realidades

Recentemente alguém (certamente com muito livre nas mãos) conseguiu finalmente interpretar “como deve ser” o calendário Maia e percebeu que afinal o Mundo não acabou em 21 de Dezembro de 2012, mas que acaba em 21 de Junho de 2020. No mínimo isto é uma boa notícia para todos quantos se preocupam com o COVID e a crise, mas também é uma boa notícia para Portugal.

Se calhar é melhor explicar. Mas, antes de mais, o que é isto do calendário Maia?

Para evitar confusões com obras Queirosianas, os Maias foram uma civilização que se desenvolveu na América Central, até aos Séculos XVI/XVII, que nos deixou legados extraordinários na matemática e na astronomia.

Segundo os Maias e os seus calendários extremamente complicados e precisos, um Baktum é um período constituído por 20 Katuns, ou seja, um período de 144 mil dias seguidos e por isso, em 21/12/12 terminou o 13º Baktum, que tantos acreditaram ser o fim do Mundo.

Mas entretanto, alguém decidiu refazer as contas e percebeu que o tão mal afamado 13º, afinal termina em 2020.

Não acredito que o mundo acabe, mas que o 14º Baktum traz novidades, ai isso traz. Parece-me mesmo que o “velho” mundo estava a morrer e o COVID, ou melhor, as medidas pós-COVID, vieram colocar a pedra tumular.

Dois de Junho de 2020 foi um marco neste funeral. Frans Timmermans, vice-presidente executivo da Comissão Europeia e líder de todo o processo Green Deal, anunciou o programa que vai “conduzir” o financiamento para a mobilidade que será implementado pela EU.

Prevê-se que o pacote de mobilidade urbana seja da ordem de 20 mil milhões de euros e será entregue aos Estados-Membro através de fundos regionais da UE, com o objectivo de apoiar os desafios relacionados com a redução de poluição do ar, mudanças climáticas e  bem-estar dos cidadãos.

Neste plano, pautam-se medidas, como carregamentos de automóveis eléctricos, transporte público e a criação de um pacote para a bicicleta de 13 mil milhões de Euros destinados a infra-estruturas e acesso a bicicletas eléctricas e não só.

Para Portugal são boas notícias. Nos dois primeiros meses deste ano, o sector que fechou 2019 com mais de 402 M€ de exportações, tinha empresas com crescimentos da ordem dos 400%. Isto devia-se fundamentalmente à elevada procura que os mercados do norte da Europa impunham. Depois veio o fecho e o regresso à actividade em pleno, com a procura a crescer novamente.

Hoje, Portugal é um país claramente exportador, líder em termos de mobilidade suave, com uma grande expansão das empresas nacionais além-fronteiras e, inclusive, com empresas estrangeiras a instalarem-se entre nós.

Esta situação deve-se ao trabalho que o sector tem desenvolvido, com a ABIMOTA e o seu Portugal Bike Value à cabeça, cumprindo os desígnios de promover o país enquanto destino para indústrias estrangeiras e projectar as nacionais “lá por fora”.

O sector Português das duas rodas e mobilidade suave está bem e recomenda-se e por isso: o mundo acabou, vai acabar, ou está prestes a isso? Ainda bem para Portugal!

Pedro Gil de Vasconcelos é licenciado em Cinema e Audiovisuais, tendo sido jornalista da RTP, onde participou e liderou diversos projetos, muitos deles ligados à mobilidade. Atualmente, lidera a Completa Mente – Comunicação e Eventos Lda.

A oportunidade única da mobilidade urbana para ajudar a combater as alterações climáticas

Os últimos meses transformaram as nossas vidas de uma forma nunca antes vista. Continuaremos a ser afetados negativamente durante meses ou, possivelmente, até anos. No entanto, e se algo de bom surgir com isto? E se usássemos esta experiência profundamente árdua para melhorar alguns aspetos das nossas vidas – por exemplo, para abordar o impacto da mobilidade no aquecimento global? Como outros referiram, não devemos desperdiçar uma crise. Foquemo-nos na Europa, que nesta matéria parece estar ativa em mais frentes do que outras regiões.

O confinamento forçado reduziu drasticamente o uso do transporte rodoviário de passageiros em todo o mundo. Nos seu ponto mais baixo, a quebra foi de 38%, relativamente ao nível normal da Europa, de acordo com a Agência Internacional de Energia (ver acima). À medida que a atividade económica continua a recuperar, o receio de utilizar o transporte público poderia resultar no aumento da utilização de veículos privados, a curto prazo. Contudo, isto não é sustentável nas cidades europeias com elevada densidade, uma vez que causaria congestionamentos insuportáveis.

A redução combinada da mobilidade e da atividade industrial resultou numa atmosfera notoriamente mais limpa, em particular nas regiões mais poluídas. Por exemplo, Paris registou uma queda de 60% nas emissões de NO2, e as dez maiores cidades espanholas registaram uma diminuição similar de 64%.

Os cidadãos (re)descobriram o ar puro e o céu limpo. Um inquérito pan-europeu elaborado recentemente mostrou que 64% dos inquiridos não querem voltar aos níveis de poluição pré-COVID. Simultaneamente, 68% (63% entre os condutores) concordaram que as cidades devem tomar medidas para combater a poluição atmosférica, mesmo que isso signifique impedir a entrada de carros poluentes nos centros das cidades.

Os urbanitas passaram igualmente a apreciar as ruas mais calmas e a possibilidade de caminharem e pedalarem mais livremente com a ausência de veículos. Evitaram os transportes públicos e preferiram andar a pé ou usar bicicletas – as vendas dispararam durante o este período. Esta situação proporciona uma grande oportunidade para os responsáveis políticos e os responsáveis pelo planeamento urbano alterarem o paradigma e tornarem alguns destes benefícios permanentes, tanto mais que outros hábitos também evoluíram, como o muito provável aumento do trabalho remoto.

Duas categorias de iniciativas, pelo menos, surgiram para alavancar esta oportunidade, i.e. uma eletrificação mais rápida das frotas e uma menor dependência dos veículos dentro das nossas cidades. Estão a ser implementadas novas iniciativas para abordar ambas as dimensões, a nível local, nacional e comunitário.

Muitas cidades reduzem o papel dos automóveis na mobilidade

Várias cidades europeias já tomaram medidas para proibir gradualmente a circulação de veículos mais antigos – e eventualmente todos os veículos poluentes –, como Paris, Estugarda, Amesterdão ou Londres.

A capital britânica impõe já uma taxa de congestionamento à maioria dos veículos que circulam no centro da cidade (15 libras, ou 16,75 euros, por dia, a partir deste mês, ao invés das anteriores 11,50 libras), e introduziu uma Zona de Emissões Ultra Baixas (ULEZ: Ultra Low Emission Zone) em 2019. Para acederem à ULEZ, os veículos de passageiros a gasóleo e a gás anteriores a, respetivamente, 2015 e 2006, custa 12,50 libras (14 euros) por dia. É de realçar que Londres tem um dos melhores sistemas de transporte público do mundo, o que é uma condição crítica.

Entre as iniciativas pós-COVID, algumas consistem em tornar permanentes algumas ciclovias que substituíram as vias automóveis durante o confinamento, ou em proibir carros em certas ruas. Os responsáveis pelo planeamento urbano lançaram-se ao trabalho em cidades como Paris, Berlim, Milão, Bruxelas ou Barcelona, que já anunciaram a adoção deste tipo de plano. Por exemplo, 35 km de ruas em Milão serão convertidos durante o Verão para utilização por ciclistas e peões. A atual presidente da câmara de Paris (que concorre à reeleição no final deste ano) reservou 20 milhões de euros para pôr as pessoas a pedalar, e propôs a eliminação de metade da capacidade de estacionamento nas ruas, como parte do longo combate aos automóveis. Roma está a planear 150 km de ciclovias, e Barcelona retirou o estacionamento em 21 km de ruas para criar espaço para os ciclistas.

Imagem: Orsay Consulting

Os oficiais eleitos não são os únicos a tomar medidas. As comunidades estão a juntar-se para implantar ‘Open Street Projects’. A organização sem fins lucrativos disponibiliza serviços de ‘advocacy’, um conjunto de ferramentas e uma base de dados, todos dedicados a ruas abertas, i.e. o encerramento temporário de ruas aos carros, de forma a torná-las disponíveis para as pessoas. Apesar do projeto se focar essencialmente nos EUA, a organização também trabalha com programas de todo o mundo.

As iniciativas nacionais têm como objetivo electrificar a frota

Vários países anunciaram proibições relativamente a veículos poluentes durante os últimos 2-3 anos. Em 2017, a Noruega foi o primeiro país a introduzir a proibição da venda de veículos novos equipados com motores de combustão interna, fixando o prazo limite em 2025. Pouco tempo depois, outros países europeus anunciaram planos semelhantes, como França (2040), Reino Unido (2040), Alemanha (2030) e Holanda (2030).

À medida que programas de incentivos são introduzidos em todo o mundo para revitalizar as economias, estes incluem normalmente fundos para apoiar a indústria automóvel nas áreas em que a sua pegada é significativa. Durante a última recessão, estes programas concentraram-se no desmantelamento de veículos mais antigos, o que ajudou a melhorar os níveis médios de emissões. Desta vez, os programas de incentivo europeus parecem concentrar-se maioritariamente nos incentivos à venda de veículos ‘verdes’.

Por exemplo, o governo francês anunciou recentemente um agressivo plano de incentivos. Os compradores de veículos elétricos com um custo inferior a 45 mil euros beneficiarão de um bónus de 7 mil euros (contra os 6 mil euros anteriores). Se substituírem um veículo mais antigo, tanto a diesel (pré-2011) como a gasolina (pré-2006), os primeiros 200 mil compradores podem obter um bónus adicional de 5 mil euros. Da mesma forma, o plano de recuperação alemão de 130 mil milhões de euros inclui um incentivo de 6 mil euros para a compra de VE, bem como a obrigação de todas as estações de serviço disponibilizarem um local para o carregamento deste tipo de veículos. O país equaciona também aumentar o seu imposto automóvel sobre veículos novos que emitam mais de 95 g de CO2/km, até mesmo duplicando-o acima dos 195 g, ao passo que os VE estariam isentos. 

O plano de recuperação da UE inclui esforços para uma mobilidade mais limpa

As iniciativas para reduzir o impacto da mobilidade no aquecimento global constavam, obviamente, na agenda da UE antes da COVID-19. Estas incluem regulamentos sobre CO2, para reduzir a média de emissões empresariais de 120 g de CO2/km para 95 g a partir de 2020, 81 g em 2025 e 59 g em 2030. É atualmente aplicável uma penalização de 95 euros, por veículo e por grama, acima deste limite. Para referência, 95 g de CO2/km equivalem a 4,1 l/100 km para um veículo a gasolina, e a 3,5 l para um veículo diesel.

Como parte do plano de incentivos da União Europeia, o programa ‘Next Generation EU‘, no valor de 750 mil milhões de euros, tem como objetivo “reparar e preparar para a próxima geração”. Um ‘Green Deal’ é parte integrante deste plano, com financiamento orientado para sistemas de transportes e logística mais limpos. Os objetivos incluem a instalação de um milhão de pontos de carregamento para veículos elétricos, e um incentivo às viagens ferroviárias e à mobilidade limpa nas cidades e regiões da UE.

Um desafio multi-stakeholder (a ser) adotado por todos

Regulamentos a diferentes níveis proporcionarão a oferta e a procura para transportes mais limpos. De acordo com a AlixPartners, a indústria já se comprometeu a gastar mais de 200 mil milhões de euros em VE, a nível mundial, até 2024 – a maioria dos agentes teria ficado na zona de conforto dos motores de combustão interna. Uma gama cada vez mais apelativa de veículos elétricos e as memórias dos céus limpos vão fazer com que mais compradores optem por veículos limpos, ou prescindam mesmo da aquisição de um. Finalmente, mais empresas estão, gradualmente, a alterar as suas frotas para VE, quer com o propósito da responsabilidade social corporativa, quer por pura necessidade, como, por exemplo, para entregas urbanas restritas.

Estou confiante que a Europa, no seu conjunto, tomará as medidas necessárias para transformar esta crise numa oportunidade para transformar a mobilidade numa parte ainda maior da solução para resolver o aquecimento global, do que as previsões antes da COVID. 

Marc Amblard é mestre em Engenharia pela Arts et Métiers ParisTech e possui um MBA pela Universidade do Michigan. Radicado atualmente em Silicon Valley, é diretor executivo da Orsay Consulting, prestando serviços de consultoria a clientes empresariais e a ‘start-ups’ sobre assuntos relacionados com a transformação profunda do espaço de mobilidade, eletrificação autónoma, veículos partilhados e conectados. Publica mensalmente uma newsletter relacionada com a revolução da mobilidade.

Helder Pedro- Secretário Geral da ACAP

“O sector automóvel é um sector barómetro da nossa economia”

Hélder Pedro,  Secretário-Geral da ACAP – Associação Automóvel de Portugal

A grave crise, que estamos a viver, não tem precedentes nas últimas décadas e será, certamente, a mais grave desde a segunda guerra mundial. É muito diferente da crise de 2008, até porque as consequências são, desde já, muito mais negativas para todos nós.
É uma crise que levará a uma desregulação da própria sociedade e que precisará de muito tempo até ser ultrapassada e, mesmo quando isso acontecer, deixará sequelas muito significativas.

O Sector Automóvel

O sector automóvel é um sector barómetro da nossa economia, e tal como aconteceu nas recessões de 2009 e 2012 é um dos sectores, ou mesmo o sector, em que a crise mais se fará sentir. Esta situação conduziu  à interrupção de toda a cadeia de abastecimento criando sérias dificuldades a todas as empresas de distribuição e, de modo mais significativo, aos concessionários de automóveis que são pequenas, médias, e até microempresas, distribuídas por todo o país, do litoral ao interior.

Mas, igualmente, todas as empresas deste sector de actividade, que representa 19% do PIB e 25% das exportações de bens transacionáveis, serão fortemente afectadas.

É, por estes motivos, que a ACAP, sendo a Associação que representa a globalidade do sector automóvel nas suas vertentes de comércio e indústria, considera que este tem de ser um sector que merece uma especial atenção por parte do Governo.

A mobilidade reveste-se, hoje em dia, de uma importância fundamental nas nossas sociedades. De ano para ano, aumenta a população que habita nas áreas urbanas com todas as implicações que isso tem ao nível de mobilidade. Ora, é precisamente aqui que a indústria automóvel tem tido um papel fundamental, com os construtores a investirem significativamente na procura de novas soluções de mobilidade, assim como em parcerias com start-ups, que têm surgido nos diversos países. 

Por outro lado, a indústria automóvel é, a nível europeu, das que mais tem investido no sentido da descarbonização. Isto deve-se, não só à forte aposta nos veículos eléctricos e híbridos plug-in, mas também nos motores de combustão a gasolina ou diesel com emissões significativamente menores do que as anteriores versões.

Apresentação do plano de incentivos da ACAP

Contudo, se a indústria tem cumprido a sua obrigação é necessário que os poderes públicos cumpram também a sua parte!

E, aqui, é importante desde logo que se aposte numa rede de carregamento de veículos eléctricos, a nível europeu, ou numa aposta forte em planos de incentivo ao abate de veículos em fim de vida, substituindo-os por veículos de nova geração, com menores emissões.

Como é público, a ACAP apresentou um plano ao Governo, de implementação desses incentivos, e estimamos que se o plano fosse implementado, haveria uma poupança energética de 3,2 milhões de litros de combustível por ano, ou seja o equivalente a 33 200 barris de petróleo.

Por outro lado, esse plano levaria a uma emissão de menos 10 800 toneladas de CO2 por ano.

É de salientar que o parque automóvel em circulação, no nosso país, é dos mais envelhecidos da Europa, com uma idade média de 12,7 anos nos ligeiros de passageiros.

A idade média dos veículos enviados para abate, na rede da Valorcar, foi de 22,1 anos em 2019 quando ainda em 2009 era de 16,6 anos.

Mas, para ultrapassar esta situação, é necessário que o Governo tome medidas, como já tomaram os Governos espanhol ou francês.

É, ainda, fundamental que os diversos países cheguem a acordo nos apoios fundamentais para relançar a economia mas, também, como exigiu a ACEA (Associação Europeia de Construtores de Automóveis) que uma parte desses apoios seja consignada aos programas de apoio à renovação do parque automóvel, tal como a ACAP preconizou.

Solidariedade Europeia

Na crise de 2008/2009, a Europa dividiu-se entre os países, sobretudo do norte, que superaram rapidamente a crise e outros, onde Portugal se incluiu, em que a saída da crise passou por um processo bastante difícil.

Esperamos todos que na saída desta difícil situação, provocada pelo coronavírus, a Europa tenha aprendido a lição e exista uma maior compreensão entre os diversos países e uma maior solidariedade entre o norte e o sul. Esta crise não resulta de uma má aplicação de políticas económicas ou orçamentais, por parte dos governos, mas é uma epidemia à escala global.

Só assim, num período de cepticismo em relação ao ideal europeu, agravado pela recente saída do Reino Unido, teremos perspectivas de um futuro promissor para a própria União Europeia, como todos esperamos.

E isto, porque cada vez mais estamos dependentes das diversas estratégias geopolíticas de que a recente guerra comercial entre China e Estados Unidos foi um claro exemplo.  Este é mais um motivo para a absoluta necessidade de termos uma Europa mais forte para enfrentar os desafios que se vão colocar na saída desta crise.

Esta crise é diferente de todas as outras, pela imprevisibilidade com que está a evoluir e por afectar, de igual modo, todos os países sejam do primeiro ou do terceiro mundo.

Mas o sector automóvel continuará a ter uma importância fundamental na descarbonização da economia e na implementação de novas soluções de mobilidade.

O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

Artigo de opinião - Helder Pedro (ACAP)

Editorial Green Future

Porquê?

Lançamos hoje o Green Future AutoMagazine, uma publicação online dedicada em exclusivo aos temas da mobilidade e transportes sustentáveis, tecnologias para a mobilidade, cidades, ambiente e energia.

Estas são questões absolutamente vitais no período de emergência climática que vivemos atualmente, em que é fundamental encontrarmos, rápida e coletivamente, um equilíbrio entre a manutenção do nosso bem-estar material – alargando-o às populações mais desfavorecidas do planeta – e uma urgente redução das emissões de gases de efeito de estufa resultantes das atividades humanas.

Simultaneamente, são temas transversais a várias dimensões da nossa organização social e económica, absolutamente determinantes para a qualidade de vida das populações, sobretudo num tempo marcado pela crescente urbanização, e em que, cada vez mais, coincidem os espaços onde as pessoas trabalham, estudam, consomem e ocupam os tempos de lazer.

Apesar desta importância notória, estes são temas a que, normalmente, os órgãos de comunicação generalistas não dão grande destaque – com honrosas exceções. Por outro lado, são frequentemente encarados como temas de nicho, debatidos apenas por um grupo restrito de especialistas.

Com esta publicação que hoje lançamos, é nosso objetivo trazer para o debate público os temas ligados à mobilidade e sustentabilidade nos transportes. Diariamente, traremos aos nossos leitores informação clara, objetiva e atual sobre as notícias, novidades, ideias, projetos, políticas, discussões e opiniões que marcam a atualidade. Contaremos com o contributo de diferentes personalidades, da área e também de outras atividades, e procuraremos produzir conteúdos participativos e inclusivos, apelativos a grupos e demografias que não são, habitualmente, associados a este debate.

O Green Future AutoMagazine é assim, também, um exercício de cidadania, que espera dar o seu contributo para uma participação ativa das pessoas na reflexão e discussão sobre questões determinantes para as suas vidas e para o futuro do planeta.

Este espaço é responsabilidade exclusiva da Direção Editorial, e não representa as perspetivas e opiniões dos membros da Redação e dos colaboradores do Green Future AutoMagazine.

Road Diet - Stefan Carsten

Road Diet

As cidades estão a converter as suas ruas centrais e parques de estacionamento em espaços de mobilidade: os espaços nas ruas para viaturas e estacionamentos estão a ser reduzidos, ciclovias e zonas pedonais estão a ser alargados e priorizados, juntamente com os transportes públicos. A pandemia da COVID-19 veio, eventualmente, até acelerar esta tendência.

Uma variedade de exemplos pelo mundo mostram como esta mudança na mobilidade pode ser bem sucedida.

Bruxelas converte parques de estacionamento em espaços públicos de alta qualidade urbana. Os próprios comerciantes beneficiam com estas mudanças.

Nova Iorque já definiu ruas da cidade onde os automóveis não são bem vindos. Na 14th Street, em Manhattan, circulavam cerca de 21 000 carros por dia. Agora, os autocarros cumprem os horários, e são pessoas, em vez de máquinas, que ocupam as ruas.

Sydney construiu uma linha de metro sem condutor e proíbe o acesso de automóveis ao centro da cidade. A área de Barangaroo foi projetada para ir ao encontro das necessidades dos ciclistas e dos peões (meta de longo-prazo para a repartição modal dos automóveis: 4%).

Em Paris, a transformação na mobilidade é bem evidente. A presidente Anne Hidalgo anuncia uma luta contra a mobilidade individual motorizada. No futuro, todas as ruas da cidade terão uma via para ciclistas (!). O plano visa tornar Paris numa ‘cidade 15 minutos’. Independentemente de se tratar de um espaço verde, um centro educativo, centro comercial, espaço de desporto ou lazer, todos os residentes não deverão caminhar ou pedalar mais de 15 minutos para chegar a estes locais. 60 000 espaços públicos de estacionamento para automóveis serão abolidos com esta finalidade.

A maior garagem do mundo destinada ao estacionamento de bicicletas foi inaugurada em Utreque, Holanda, em 2019. Disponibiliza, na principal estação de comboios da cidade, lugares de estacionamento para 12 500 bicicletas , e parece já ser demasiado pequena. A previsão é que a participação das bicicletas no tráfico urbano duplique, novamente, até 2030.

Metamorfose: do automóvel para a bicicleta (Utreque, 2007 e 2018)
Imagens: Van der Lingen/Boland 2018

Milão é uma das cidades mais sujas de Itália. Ou talvez deva dizer: foi uma das mais sujas cidades de Itália. Na província da Lombardia registaram-se mais de 16.000 mortes por COVID-19 até meados de Junho, significativamente mais do que em qualquer outra cidade de dimensão comparável.

Para os seus responsáveis, chegou a hora de um novo começo: “Trabalhámos durante anos para reduzir a utilização do automóvel. Se toda a gente conduz um carro, não existe espaço para as pessoas, não existe espaço para nos movermos, não existe espaço para qualquer atividade comercial fora das lojas. Claro que queremos reabrir a economia, contudo consideramos que o devemos fazer em bases diferentes do que anteriormente”, diz Marco Granelli, vereador responsável pelo sistema de transportes de Milão.

De uma forma geral, os objetivos são ambiciosos, senão mesmo espetaculares, porque definem a mobilidade urbana como o ponto de partida para uma nova era sócio-económica.
Milão tornar-se-á numa cidade onde as pessoas poderão viver e trabalhar livres da poluição causada pelo trânsito, sendo que os ciclistas e os peões conseguirão deslocar-se livremente numa cidade anteriormente congestionada

O confinamento provocado pela pandemia do COVID-19 transformou a capital da Lombardia numa cidade de fácil circulação para bicicletas e peões, com uma redução de 30% a 75% no volume de tráfego – e, com isso, da poluição atmosférica.

Para a garantir que esta situação se mantém serão reconvertidos, durante o Verão, 35 quilómetros de estradas, onde a limite de velocidade passará a ser de 30 km/h. O projeto-piloto irá transformar a principal rua comercial da cidade milanesa, o Corso Buenos Aires: para promover uma mobilidade ativa e saudável, o tráfego automóvel será reduzido, e delimitada uma faixa específica para ciclistas em ambos os sentidos.

Mais ciclovias, menos emissões: o Corso Buenos Aires, hoje e no futuro.
Fonte: Abitare

Na era moderna, as nossas cidades consistiam em espaços monofuncionais, com zonas separadas para se viver, trabalhar e consumir. Acima de tudo, o automóvel foi epítome de prosperidade, sucesso e estatuto, permitindo ligar facilmente estes espaços – e até mesmo fundi-los – na vida quotidiana. Esta configuração era a ideal na época da industrialização, visto tornar possível a separação entre as áreas de produção, sujas e fétidas, e as áreas de descanso e vida privada.

Hoje em dia, esta separação é obsoleta, já que o trabalho, a vida pessoal, o lazer e o consumo têm lugar diretamente na cidade. Frequentemente, não existe distinção entre o local onde se vive e onde se trabalha. Assim, para definir a mobilidade do amanhã são menos importantes as infraestruturas de betão do que novas oportunidades e acesso a produtos e serviços de mobilidade. Compreender os problemas de mobilidade atuais é a base para resolver os problemas de tráfego no futuro, resultado isto na transformação da mobilidade.

Stefan Carsten

Stefan Carsten, consultor e especialista nas áreas do futuro das cidades e da mobilidade, vive o futuro há mais de vinte anos. É um dos responsáveis pelo início da transição da indústria automóvel de um setor centrado no veículo para um setor centrado na mobilidade. Hoje em dia, vive e trabalha em Berlim.

E depois do COVID?

Diz-se que dos grandes problemas vêm as grandes soluções e entendo que ninguém dúvida de que estamos a viver um grande problema.

Entendo também que o COVID-19 não é, por si só, o problema. Entendo sim, que que no que ao consumo e à mobilidade diz respeito – e hoje andam de mãos dadas – a actual situação é o culminar do problema, o catalisador que nos vai obrigar às grandes soluções.

Estamos no momento em que temos que decidir dar o passo em frente, mas este é também o momento em temos que perceber para que lado é o precipício, essa é a diferença entre a catástrofe e o avanço.

Parece-me que o COVID-19 nos está a empurrar para mais uma Revolução Industrial. Uma revolução em que o mundo tem que se re-industrializar, de forma responsável, recolocar a produção em proximidade e evitar cadeias de distribuição longas, ou muito longas, como se tem vivido nas últimas décadas.

Nas últimas décadas o mundo ocidental tem desinvestido na indústria, deslocalizando-a para sítios onde a mão-de-obra é barata.

Muitas das vezes isto tem custos sociais altos. Esta é uma situação que coloca todo o mundo dependente dos fluxos de produção oriundos de zonas específicas do mundo e se por acaso alguma dessas zonas ‘adoece’, seja por guerra, catástrofe natural, ou doença real, o mundo adoece junto. Já tivemos algumas situações que nos teriam permitido olhar para esta situação ‘com olhos de ver’, mas teve mesmo que ser este ‘impertinente’ vírus do início do terceiro milénio a provocar as mudanças.

As quarentenas e os confinamentos trouxeram águas mais limpas e ar mais puro. Ora, criar polos de produção regionais faz com que a pegada ecológica de qualquer produto seja menor. Explico? Será melhor.

Numa perspectiva ‘macro’, o actual modelo económico faz com que um recurso, por exemplo o algodão, seja explorado na Ásia Central, levado para uma indústria a seis mil quilómetros a sul que o vai transformar em tecido, depois levado para outra, mais o Oriente, a mais cinco mil quilómetros, onde por exemplo mão de obra barata a vai transformar em tecido, que vai ser cortado e cosido a mais dez mil quilómetros, mais ma vez, certamente com recurso a mão de obra barata e depois vai a algum sítio onde recebe a etiqueta ‘made in…’. Por fim faz mais uns milhares de quilómetros, se calhar até regressa a algum dos pontos de origem, para ser vendido. Ora, o valor deste tipo de produção até pode ser mais baixo, mas o impacto no ambiente e tantas vezes na sociedade, tem um custo gigantesco.

Urge repensar as cadeias de distribuição e urge também repensar a mobilidade. É fundamental criar polos industriais capazes de pegarem na matéria-prima e a transformarem em produto acabado e distribuir esses mesmo polos um pouco por todo o mundo será parte da solução.

Podemos apontar os dedos ao transporte pessoal, ao automóvel, mas a montante e a jusante há toda uma enorme quantidade de trabalho a ser feita. É necessário criar pegadas ecológicas mais responsáveis, reduzir a extensão das cadeias de distribuição. É necessário criar custos sociais mais baixos, ser mais responsável no consumo.

Esta é uma atitude que tem que ser tomada nos extremos das cadeias de produção. Tem que ser tomada por parte das grande indústrias, para não estarem “reféns” de crises regionais, para reduzirem “custos de transportes” e por parte dos consumidores, que devem exigir produtos regionais, com produção responsável e, sobretudo, distribuição mais também ela mais responsável.

Pedro Gil de Vasconcelos é licenciado em Cinema e Audiovisuais, tendo sido jornalista da RTP, onde participou e liderou diversos projetos, muitos deles ligados à mobilidade. Atualmente, lidera a Completa Mente – Comunicação e Eventos Lda.