Opinião de Gil Nadais Secretário Geral da ABIMOTA – Associação Nacional das Indústrias de Duas Rodas, Ferragens, Mobiliário e Afins
A sustentabilidade do planeta, a atual situação pandémica ou a recente crise do Suez obrigam-nos a pensar que é urgente repensar o presente modelo económico. Uma ‘doença’ na China ou o ‘entupimento’ de uma via estrutural do comercio internacional fazem-nos entender a urgência de reformular modelos; no fundo, de ir de encontro ao que há muito os ecologistas vinham a reivindicar.
O Canal do Suez é estrutural para a saúde da economia internacional e da europeia em particular. Já o tínhamos entendido no início dos anos 70 e, muito recentemente, compreendemo-lo ainda melhor. Uma situação de conflito, ou o muito mais simples encalhamento de um supercargueiro, paralisam a economia.
A dependência do Extremo Oriente é, na conjuntura em que vivemos, umbilical. Desde máscaras cirúrgicas a ventiladores, desde calçado desportivo a chips eletrónicos, quase tudo vem da Ásia e, principalmente no que à Europa diz respeito, passa por dois estrangulamentos: pelo Canal do Suez e pelo Canal do Panamá. No fundo, estamos perante uma economia ‘refém’ de condições sanitárias, de condições geopolíticas e acidentais, na maioria dos casos exógenas ao ocidente, com a economia europeia à cabeça.
Depois temos a questão ambiental, resultante das linhas de distribuição demasiado longas, com o transporte de matérias primas e de mercadorias a ter dimensões globais e a pegada ecológica de cada produto a caminhar em direções que se podem tornar insustentáveis.
Felizmente, o entendimento desta situação, com a pandemia a servir de catalizador e o recente incidente do Suez a certamente acelerar todo o processo, serve para que a Europa repense a forma de estar e o setor português da mobilidade suave está-se a posicionar na liderança deste processo.
Há dez anos, a dependência portuguesa de componentes oriundos do Extremo Oriente, na montagem de uma bicicleta, por exemplo, era da ordem dos dois terços. Em 2019, segundo dados recolhidos junto da COMTRADE, essa integração já tinha sido reduzida para 31%. Ou seja, há dois anos, os números tinham sido revertidos. Os países europeus foram os principais fornecedores de componentes (Espanha com 13,4%; Países Baixos com 6,2%; Alemanha com 5,5%; Itália com 4,1% e França com 4,0%) e é cada vez maior a integração de produto nacional.
Atualmente, Portugal caminha no sentido de gerar uma cada vez maior independência no que à produção de bicicletas diz respeito. Por exemplo, a recente instalação de uma fábrica que se dedica à produção de quadros de carbono, a primeira fora da Ásia, é mais um passo nesse sentido.
Neste momento estamos trabalhar no sentido de promover uma cada vez maior independência, quer nas bicicletas convencionais, quer nas bicicletas elétricas (e-bikes) onde a integração de tecnologia é particularmente elevada.
Estarmos a promover a reindustrialização; é bom para a economia e, sobretudo, muito melhor para o ambiente.
Paulo Almeida Presidente da Comissão Organizadora do Oeiras Eco Rally – Portugal
Foi ainda no século XIX que se disputou a primeira competição automóvel, organizada pela revista ‘Le Petit Journal’. Com percurso entre Paris e Rouen, reza a história que foi ganha por um Peugeot conduzido por Georges Lemaitre.
Curiosa é a forma como foi classificado este evento, que foi anunciado como ‘Concours des Voitures sans Chevaux’, ou seja, ‘competição de carros sem cavalos’. Era uma novidade, pois, naqueles tempos, a mobilidade era essencialmente assegurada por veículos puxados por animais. Imaginem agora o quadro sanitário, onde inúmeros cavalos, mulas e afins proliferavam, deixando os seus excrementos nas mais charmosas avenidas das capitais de todo o mundo. Maus cheiros e doenças associadas a este cenário, eram recorrentes.
Não há dúvidas que nestes tempos, o automóvel com propulsão mecânica chegou para ajudar a despoluir e melhorar significativamente as condições sanitárias das cidades. Na altura, o baixo nível de emissões de poluentes, emanadas dos escapes, não preocupava e as cidades livraram-se da pestilenta e perigosa mixórdia deixada pelos animais.
Voltando às corridas de automóveis, estas começaram a aparecer por todo o lado, transformando-se na montra desta indústria. Mais de um século se passou e muito se evoluiu, em especial no capítulo da segurança, desempenho e do negócio, com inovação nas transmissões televisivas e utilização de plataformas diferentes das convencionais… tudo mudou muito, menos a sustentabilidade dos eventos.
Apenas na segunda década do século XXI e com a necessidade dos fabricantes associarem uma imagem mais ‘verde’ às suas marcas, começaram-se a estudar novas formas de estar no desporto automóvel.
A Fórmula 1 passou a ser híbrida – nasceu a Fórmula E – e foram aparecendo outras competições, com menos notoriedade, mas igual vontade de fazer acontecer.
E em Portugal? Passou-se algo de diferente no desporto automóvel?
Aproveitando um processo de reorganização dos quadros competitivos a entidade federativa, aceitou a proposta do CCP para, pela primeira vez, se trazer para Portugal uma competição automóvel, com emissões zero.
Primeira edição do Oeiras Eco Rally – Portugal (fonte: Organização)
Como não temos ainda muitas viaturas elétricas de competição, a solução seria promover eventos com veículos de série, onde a velocidade não é a componente fundamental, mas sim, a regularidade e o consumo. Nasceu assim a primeira competição automóvel de emissões zero em Portugal, o Oeiras Eco Rally – Portugal, evento internacional integrado no campeonato da FIA – Federação Internacional do Desporto Automóvel.
Fez-se história naquele 10 de junho de 2018, momento eternizado na foto, com todos os que, naquele dia abriram um novo capítulo do desporto automóvel em Portugal.
José Miguel Trigoso Presidente do Conselho de Direção da Prevenção Rodoviária Portuguesa
Com o intuito de tornar a nossa mobilidade mais sustentável, os veículos automóveis têm visto os seus motores a combustão serem substituídos por motores elétricos, fomentam-se cada vez mais as deslocações a pé e/ou a utilização de bicicletas e outros modos suaves, reduzindo a utilização do automóvel. Têm sido igualmente estimuladas as deslocações em veículos de 2 rodas a motor, nomeadamente nas zonas urbanas, para reduzir o tempo de deslocações e os seus custos, contribuindo para o aumento da capacidade de estacionamento, isto claro sem esquecer a utilização do transporte público. Terão estas alterações na nossa mobilidade consequências na segurança rodoviária? Claro que sim.
Porquê? A taxa de sinistralidade por quilómetro percorrido é semelhante para peões e ciclistas, e é cerca de 7 a 8 vezes superior à dos automóveis ligeiros, embora cerca de 3 a 4 vezes menor do que a dos veículos de 2 rodas a motor (dados do SWOV, Instituto de Investigação Holandês, país onde a utilização dos modos suaves está mais desenvolvida na Europa).
Ainda de acordo com dados e estudos holandeses onde se avalia o risco de morte por mil milhões de quilómetros percorridos, os resultados apontam para que sejam os transportes públicos os que proporcionam melhores resultados – risco de 0.11 para os autocarros e de 0.01 para os comboios, face a 1.60 para o automóvel, 9.09 para a bicicleta, 12.28 para os peões e 52.00 para os motociclos.
E em Portugal, qual a evolução da sinistralidade grave (vítimas mortais + feridos graves) relativa a estes tipos de veículos?
Na última década verificou-se uma redução da sinistralidade tanto nos utentes de veículos ligeiros (33,6%) como nos peões (12,8%), contrariamente ao que se registou nos ciclistas, com um aumento da sinistralidade de 32,0%, e nos utentes dos veículos de 2 rodas a motor de 11,8%, destacando-se aqui os motociclistas com um incremento de 47,2%.
Os portugueses continuam a ser dos europeus que mais utilizam o automóvel particular nas suas deslocações, estando abaixo da média europeia no que à utilização dos transportes públicos e da deslocação a pé diz respeito, o recurso aos 2 rodas a motor é similar e estão muitíssimo abaixo no recurso à bicicleta (são os que menos a utilizam).
Tais dados revelam a enorme margem de progressão para que nos próximos anos se verifique uma alteração da forma como nos deslocamos, apostando em modos mais suaves e sustentáveis.
Mas quais as consequências a nível da sinistralidade rodoviária? Se o sistema se mantiver, mais utentes irão optar por trocar o automóvel em prol dos outros meios, mas em detrimento dos transportes públicos, o que agravará particularmente a sinistralidade será se essa transferência passar para as bicicletas e veículos de 2 rodas a motor.
No entanto, é imperioso que se mantenha e até acelere a modificação da utilização dos diversos meios de transporte em detrimento do automóvel.
O que fazer? Como reduzir o risco de acidente para os veículos de 2 rodas (incluindo as bicicletas) e para os peões? Através de alterações na infraestrutura, na segurança dos veículos e nos comportamentos de todos os diferentes tipos de utentes. Cada um destes temas, nomeadamente os que se referem à infraestrutura e aos comportamentos, justificam uma abordagem com muito maior profundidade do que esta. Mas se não se corrigirem os erros de conceção das infraestruturas em meio urbano que se estão a cometer (inadiável a implementação de auditorias de segurança rodoviária com rigor e transparência) e não se alterarem comportamentos de condutores de veículos automóveis, de motociclistas, de ciclistas e de peões, a situação da sinistralidade rodoviária tem todas as condições para se agravar. É de extrema importância a promoção de uma convivência e colaboração entre todos estes tipos de utentes, abolindo alguma animosidade que se está a verificar.
Há que refletir ainda sobre as implicações do significativo aumento da circulação de trotinetas elétricas, em todos os tipos de vias e sem limites de idade, bem como a não obrigatoriedade do uso de capacete, o número de acidentes e de lesões graves crescerá, dado que todos os estudos apontam para riscos muito mais elevados do que os verificados para as bicicletas.
Resumindo, é fundamental prosseguir no caminho da alteração da utilização dos meios de transporte a que recorremos, para garantir uma mobilidade sustentável, mas tal tem de ser acompanhado de um conjunto de estudos e da aplicação de medidas que mitiguem o aumento do risco de acidente.
Mais de 80% dos trajetos começam e terminam à porta de casa. Se aqui forem oferecidos meios inovadores e sustentáveis de transporte (idealmente já disponíveis aquando a mudança de habitação), existem grandes promessas: tornar as zonas residenciais mais atrativas e vivas e para uma mobilidade mais sustentável. A tendência é clara: a mobilidade e a ‘imobilidade’ (imobiliário) estão cada vez mais próximas, tornando-se progressivamente mais interligadas. A nossa compreensão da mobilidade e da vida está a ser reformada. O catalisador para esta convergência é o financiamento sustentável.
Nordhavn, Copenhaga: a ‘cidade 5 minutos’
Nas próximas quatro décadas, esta zona portuária na costa do Øresund irá evoluir para um espaço urbano com 40.000 habitantes e 40.000 empregos. Na nova ‘cidade de curtas distâncias’, lojas, instituições, locais de trabalho, instituições culturais e transportes públicos estão a cinco minutos de distância a partir de qualquer ponto do distrito. Existirão até 1.900 lugares de estacionamento para automóveis, maioritariamente em parques de grandes dimensões. O estacionamento na berma da estrada está limitado a um máximo de 10% dos lugares de estacionamento e reservado para estacionamento de curta duração, e os restantes lugares estão disponíveis para bicicletas. Shuttles autónomos ligam os serviços públicos e os destinos privados – aumentando assim a pressão para a conversão dos lugares de estacionamento em espaços públicos.
Abram caminho para a mobilidade verde: vista do distrito portuário de Nordhavn (imagem: cobe.dk)
O Cykelhuset existe em Malmö desde 2017: um edifício residencial e um hotel de bicicletas que é consistentemente e exclusivamente adaptado às necessidades da mobilidade urbana em bicicleta. Todo o bloco de apartamentos é concebido para ser o mais acessível possível para este tipo de transporte, pelo que estafetas em bicicleta/prestadores de serviços logísticos podem entregar as encomendas diretamente à porta dos clientes. No programa de partilha de bicicletas, os inquilinos podem alugar diferentes tipos de velocípedes – bicicletas de carga, bicicletas para entregas, táxis e bicicletas dobráveis, bem como e-bikes. Está disponível uma bicicleta para as famílias que pode transportar oito crianças e é utilizada como bicicleta de transporte escolar. Lugares de estacionamento para automóveis? Nenhum.
Nos EUA, as empresas imobiliárias estão atualmente a cooperar com entidades como a Uber, a Lyft e outras, para testarem novos conceitos de recolha e entrega à porta dos apartamentos (o que também pode tornar obsoleto o dispendioso espaço de estacionamento).
Residência acessível para bicicleta: Cykelhuset em Malmö (imagem: Jennie Fasth; 2017)
O caminho para uma cidade de mobilidade sustentável
Uma vez que as cidades têm uma influência significativa na agenda do desenvolvimento sustentável, as questões sociais, ecológicas e económicas têm de ser consistentemente incluídas nos processos de tomada de decisão e financiamento urbano. Um exemplo deste princípio é o conceito ‘2.000 Watt Society’ da cidade de Zurique [que imagina um consumo energético primário por cidadão de um país desenvolvido inferior a 2.000 watts/hora, sem prejuízo da sua qualidade de vida, até 2050], ancorado na legislação municipal. Em caso de dúvida, esta é a referência na ponderação das decisões de investimento.
O Acordo Verde da Comissão Europeia afirma claramente que o continente deve ser neutro em termos climáticos até 2050. Os requisitos e as regras de financiamento associados irão alterar significativamente o futuro comum da mobilidade e da ‘imobilidade’. Os setores do imobiliário e dos transportes serão particularmente afetados.
Convergência espacial e digital da mobilidade e do imobiliário
Os efeitos da interação entre a mobilidade e a ‘imobilidade’ podem ser observados na envolvente direta e indireta dos imóveis – na aldeia, no bairro, na freguesia, nos blocos recentemente edificados ou na interação entre logística, deslocações, etc. As duas dimensões interagem e, em conjunto, definem a viabilidade futura da mobilidade urbana e da sociedade. Quatro aspetos desempenham um papel central:
Foco nas bicicletas e nos modos de mobilidade ativa que têm permissão para utilizar o espaço público de forma prioritária.
Um mix de 50% de habitação + 50% de locais de trabalho conduz a um espaço misto 100% multifuncional, permitindo que a zona residencial integre todas as funções urbanas.
Estações descentralizadas de mobilidade digital: a mobilidade com base em estações (on demand) é o motor das ligações nas cidades orientadas para o futuro. As estações de mobilidade são também infraestruturas para o carregamento de veículos elétricos (car sharing estacionário). Desta forma, não existe apenas uma estação, mas o maior número possível de estações, equipadas em simultâneo com opções flexíveis de carregamento. Nestas incluem-se espaços de carregamento rápido, bem como uma alargada gama de opções de partilha, nomeadamente bicicletas elétricas e de carga.
O estacionamento como serviço, que permite economizar espaço de estacionamento, mimetizando o que acontece com os automóveis ou a energia (baseados em preços dinâmicos)*.
As cidades têm de se tornar mais sustentáveis – e já o são. Os investimentos na arquitetura verde e na mobilidade estão a revelar-se particularmente eficazes, uma vez que são também investimentos financeiros de primeira classe.
Isto é atingido através do princípio da convergência radical, tanto tecnicamente como no plano espacial. A eletromobilidade e a partilha de automóveis em estações, seja em blocos de apartamentos ou num parque industrial, são um pré-requisito para a redução de automóveis no quotidiano. No futuro, dificilmente existirá um lugar de estacionamento para a automobilidade individual; ao invés, a simplificação e o networking irão dominar. Os centros de e-mobilidade estarão disponíveis localmente, tal como as bicicletas e as bicicletas de carga, que entrarão constantemente nas residências. Os elevadores, os apartamentos e toda a logística estarão prontos para a nova mobilidade, que começa de novo à porta de cada casa.
* Mais sobre este assunto no próximo artigo.
Stefan Carsten, consultor e especialista nas áreas do futuro das cidades e da mobilidade, vive o futuro há mais de vinte anos. É um dos responsáveis pelo início da transição da indústria automóvel, de um setor centrado no veículo para um setor centrado na mobilidade. Vive e trabalha em Berlim.
Na indústria automóvel, todos os fabricantes tradicionais têm capacidades internas de montagem. No entanto, por vezes subcontratam programas específicos, porque os seus volumes são demasiado baixos – e trariam perturbações às grandes fábricas – ou exigiriam uma nova unidade de produção, na qual os fabricantes podem não estar preparados ou financeiramente aptos para investir. Inversamente, os fabricantes emergentes carecem frequentemente dos meios, volumes e/ou conhecimentos para criarem a sua própria unidade de montagem. Podem também resistir a acrescentar um risco de produção (ver o ‘inferno de produção’ da Tesla) aos necessários riscos de engenharia, de adaptação do produto ao mercado e de colocação no mercado. A produção por contrato respondeu estas necessidades.
Emergem três modelos para lidar com a produção por contrato. A abordagem mais direta consiste em estabelecer uma unidade dedicada, que pode ser apoiada por capacidades de engenharia contratada – a Magna Steyr, por exemplo. Uma segunda abordagem consiste simplesmente em oferecer capacidades e conhecimentos de produção a outros fabricantes, que de outra forma seriam utilizados para satisfazer necessidades internas – a JAC Motors da China, por exemplo. Por último, e mais interessante, novas empresas que tenham desenvolvido uma plataforma elétrica podem conceber e fabricar veículos de acordo com as especificações dos clientes – a Arrival do Reino Unido, por exemplo. Analisaremos, de seguida, estes três modelos.
Estas várias abordagens à produção de veículos chegam numa altura em que o espaço da mobilidade está a sofrer uma transformação radical. Uma série de startups estão a tentar tornar-se marcas automóveis de pleno direito, emergem novos conceitos de mobilidade, tais como robotáxis e shuttles autónomos, e a eletrificação permite novas formas de conceber e construir veículos.
Contratação dedicada
Nas áreas da eletrónica e indústria aeroespacial, a Foxconn – o maior produtor de iPhones da Apple – ou a Flex são conhecidos por produzirem sob contrato para os seus clientes, que muitas vezes não têm capacidades próprias de produção. Estas empresas investem em recursos e conhecimentos de produção genéricos, e oferecem os seus serviços de montagem e gestão de cadeias de fornecimento.
Na indústria automóvel, o maior fabricante por contratos é a Magna Steyr, uma subsidiária da Magna, um fornecedor de primeira linha (Tier 1). Na sua fábrica de Graz, na Áustria, a empresa produz atualmente veículos para a Mercedes-Benz (Classe G), BMW (Série 5 e Z4), Toyota (Supra) e Jaguar-Land Rover (e-Pace, i-Pace). A empresa também abriu uma unidade na China, onde produz um SUV para a Beijing Electric Vehicle Co., e está a considerar uma terceira fábrica nos Estados Unidos. As unidades existentes têm uma capacidade anual de 170.000 e 180.000 veículos, respetivamente.
A Magna Steyr está posicionada de forma única como fornecedor ‘Tier 0,5’, uma vez que se pode apoiar no negócio de componentes/sistemas da sua empresa-mãe. Isto permite-lhe oferecer capacidades de sourcing e engenharia de veículos, além da montagem e gestão da cadeia de fornecimento. Graças a esta combinação única, a Magna Steyr vai desenvolver e produzir o primeiro veículo da Fisker, o Ocean, na plataforma da Magna, uma vez que a startup sediada na Califórnia carece do capital para investir na produção própria.
Pode também lembrar-se do concept car da Sony, o Vision-S, apresentado no CES 2020. No evento deste ano, a empresa redobrou esforços e apresentou alguns dos seus parceiros industriais, incluindo a Magna Steyr para a engenharia e produção do veículo. A Sony tem uma marca forte, vasta capacidade em eletrónica e software, mas não tem experiência em engenharia ou produção automóvel. A Apple pode muito bem ser a próxima, com um estratégia semelhante.
A outra empresa de produção por contrato bem establecida é a Valmet Automotive, que entregou, até à data, 1,7 milhões de veículos. A empresa finlandesa produz atualmente veículos para a Mercedes-Benz (Classe A e GLC), depois de ter já montado automóveis para a Porsche e a Fisker (Karma). A empresa também tem desenvolvido conhecimento especializado em veículos elétricos, a nível de engenharia e de produção (por exemplo, packs de baterias).
A Foxconn é o novo jogador deste mercado, uma vez que os volumes de smartphones estão a estabilizar. A empresa de Taiwan começou a abastecer a indústria automóvel com conectores e ecrãs há mais de dez anos, mas aumentou drasticamente a sua ambição, recentemente. Nos últimos meses, a Foxconn apresentou a sua própria plataforma elétrica, anunciou acordos de produção por contrato com a Byton (para o M-Byte) e a Fisker (para o seu segundo veículo), e está alegadamente em conversações com a Fiat-Chrysler [agora parte da Stellantis] para estabelecer uma joint venture de produção na China.
Uma vez que o gigante de Taiwan é ainda inexperiente na área automóvel, formou também uma joint venture 50-50 com o fabricante chinês Geely (proprietário da Volvo, maior acionista da Daimler, etc.) para fornecer serviços de consultoria automóvel relacionados com veículos completos, sistemas de propulsão e componentes, combinando os conhecimentos das duas empresas a nível de produção industrial e indústria automóvel, respetivamente. Esta iniciativa ajudará a Foxconn, ou a sua joint venture com a Geely, a tornar-se um forte concorrente da Magna Steyr.
Partilhar capacidades de produção e conhecimentos técnicos
A indústria automóvel é um negócio muito intensivo em capital: uma fábrica totalmente finalizada custa milhares de milhões de dólares. O volume é crítico, e a utilização da capacidade instalada é uma métrica essencial. A procura por uma maior utilização e retorno do investimento pode levar os fabricantes a montarem veículos sob contrato para outros construtores, evitando, no entanto, concorrentes diretos, se possível.
Esta abordagem é atualmente utilizada pela empresa chinesa JAC Motors, que estabeleceu uma parceria com a NIO para produzir os veículos do novo fabricante de elétricos, depois de este ter abandonado os planos de desenvolvimentos de capacidades próprias. Isto reduziu drasticamente as necessidades de capital da NIO e proporcionou à JAC um volume adicional de 44.000 veículos, no ano passado. Agora que a NIO está a ganhar espaço no mercado e força financeira, planeia entrar no capital do seu parceiro, de forma a controlar conjuntamente a produção. O recurso à subcontratação foi um trampolim.
Da mesma forma, a Geely está agora a oferecer produção por contrato. O rápido crescimento da utilização da capacidade do fabricante nas suas onze fábricas caiu de 85% em 2017 para 59% em 2019, e provavelmente ainda mais em 2020. Mesmo sem atender ao ponto de equilíbrio financeiro, esta baixa utilização deixa uma margem significativa para maiores retornos. Um primeiro contrato chegou com a Faraday Future, para produzir o sedan F91, em parceria com a Foxconn.
É também interessante notar que a Geely acaba de anunciar a Jidu Auto, uma joint venture com a Baidu, rival chinês da Google, para desenvolver, fabricar, vender e prestar serviços de veículos elétricos. A Geely contribuirá com as suas capacidades de engenharia (aproveitando a sua arquitetura EV aberta) e de produção, e a Baidu fornecerá software para veículos, incluindo o sistema aberto de condução autónoma desenvolvido pela sua divisão Apollo.
Por último, ouvimos recentemente rumores de conversações entre a Apple e fabricantes estabelecidos, como a Hyundai-Kia e a Renault-Nissan-Mitsubishi, para (possivelmente desenvolver) e produzir o seu hipotético futuro veículo. Tal como a Sony, não faria definitivamente qualquer sentido para a Apple entrar na engenharia ou produção de veículos, uma vez que estas atividades requerem conhecimentos profundos e diluiriam as estratosféricas margens brutas da empresa – o capital não é aqui uma questão.
A abordagem com base no skate elétrico
A abordagem mais radical e inovadora na produção por contrato baseia-se no novo conceito de plataforma elétrica, que rapidamente ganhou espaço em toda a indústria, quer nos fabricantes tradicionais, quer nas startups. O ‘chassis rolante’ elétrico tornou-se uma base de marca branca sobre a qual se podem fixar carrocerias específicas de diferentes marcas.
O exemplo mais marcante desta abordagem é o contrato assinado pela Amazon com o novo fabricante norte-americano Rivian, para 100.000 furgões elétricos de distribuição. O veículo vai aproveitar a plataforma que sustentará o próximo SUV R1S e a pickup R1T da Rivian. A empresa está a conceber a carrinha de acordo com as especificações da Amazon e iniciará a produção no próximo outono.
Da mesma forma, a Arrival, sediada no Reino Unido, introduziu um versátil furgão elétrico, associado ao conceito de micro-fábricas, que requerem cerca de 50 milhões de dólares de investimento para um volume de produção até 10.000 unidades por ano. Isto oferece a opção de instalar capacidade em múltiplas localizações e responder às necessidades locais com produtos à medida. A empresa já recebeu uma encomenda da UPS para 10.000 carrinhas.
Outras startups estão a abordar o mercado de uma forma ligeiramente diferente. A [israelita] REE, a Applied EV, da Austrália, e mais algumas empresas, desenvolveram skateboards elétricos – e, por vezes, autónomos. Enquanto estas empresas poderão não ter de se envolver na produção por contrato per se, os seus produtos são uma base excelente, sobre a qual outras podem desenvolver e montar veículos com finalidades específicas. A redução do âmbito da engenharia, instrumentação e montagem para a ‘cobertura’ do veículo reduz grandemente as necessidades de capital e conhecimento.
As abordagens de produção por contrato analisadas acima resultam em menores barreiras à entrada no mercado automóvel, oferecendo acesso a recursos e conhecimentos especializados, de capital intensivo. A combinação de engenharia por contrato e, possivelmente, a utilização de skates elétricos de marca branca permitem a entrada de novos intervenientes no mercado, o que proporcionará uma maior diversidade de produtos e uma maior concorrência.
Marc Amblard é mestre em Engenharia pela Arts et Métiers ParisTech e possui um MBA pela Universidade do Michigan. Radicado atualmente em Silicon Valley, é diretor executivo da Orsay Consulting, prestando serviços de consultoria a clientes empresariais e a start-ups sobre assuntos relacionados com a transformação profunda do espaço de mobilidade, eletrificação autónoma, veículos partilhados e conectados.
António Gonçalves Pereira Presidente da Ecomood Portugal
Numa época em que tanto se apela à descarbonização e à utilização de meios de mobilidade mais suaves, em Dezembro último confirmou-se que a esmagadora maioria dos pequenos veículos elétricos já vendidos em Portugal, como trotinetas, monociclos ou hoverboards, estão ilegais.
Este parece ser o resultado do Decreto-Lei n.º 102-B/2020, em cujo texto, logo de início, consta “atendendo à proliferação de veículos equiparados a velocípedes que podem circular em pistas de velocípedes e em pistas mistas de velocípedes e peões, e à sua extrema perigosidade na partilha de espaço, restringe-se a equiparação a velocípedes apenas a veículos com potência máxima contínua de 0,25 kW e que não atinjam mais de 25 km/h de velocidade em patamar”.
Para analisarmos esta questão, começo por lhe dar a ler estes três títulos:
“Greg Van Avermaet ganhou o sprint atingindo quase 1.500 watts nos últimos 200 metros”.
“Filippo Gana fez médias superiores aos 500 watts e 56 km/h no contra-relógio de hoje”.
“Com quatro motores elétricos e uma potência a rondar os 1.000 cavalos que o ‘disparam’ até aos 100 km/h em apenas 3 segundos, o FFZero1 atinge uma velocidade máxima de 321 km/h. São números muito interessantes…”
Nos dois primeiros casos são mencionados ciclistas. Profissionais, é certo, mas humanos. Portanto, sem motor. Já no terceiro caso menciona-se um automóvel que, como muitos outros autênticos ‘mísseis’ de 2 e 4 rodas, poderá circular legalmente nas estradas de todo o mundo. Ficando ao critério do condutor usá-lo de forma legal ou usufruindo das suas tão ilegais capacidades.
Para os menos habituados a isto de kilowatts, digo-lhe que 0,25 kW equivalem a cerca de… 0,3 cavalos. Sim, menos de um terço de cavalo de potência. Para outra comparação bem elucidativa, vá espreitar a sua varinha mágica ou o seu aspirador. Mesmo não sendo das mais potentes, a varinha andará nos 450 watts. E o seu aspirador, mesmo caseiro e fraquinho, facilmente terá algo como 1,6 kW, ou seja, 2 cavalos. Já a sua bicicleta, monociclo ou trotineta, se forem elétricos, não podem ter nada que se compare.
E os limites dos automóveis?
E podíamos pensar que isso faz sentido, já que se destinam a partilhar espaços com peões. Mas não. Nem tão pouco as bicicletas a pedal o podem fazer, muito menos estes pequenos veículos electrificados. Porque, segundo o legislador, são de “extrema perigosidade na partilha de espaço” com peões e, até, com outros veículos sem motor. Portanto, estes limites são para circular nas ainda muito poucas ciclovias e, maioritariamente, nas ruas e estradas. Partilhando aí o espaço com os, ao que transparece no Código da Estrada, nada perigosos automóveis de qualquer potência e velocidade de ponta. Porque a esses não é imposto qualquer limite, podem mesmo ser fabricados, e vendidos, com capacidade para fazerem 3 ou 4 segundos dos zero aos fora da lei e o triplo da máxima das velocidades máximas.
Quase da mesma forma, o limite de 25 km/h imposto a estes pequenos veículos, além de ser muito menos do que, com alguma facilidade, se consegue atingir sem qualquer motor, acrescentam um factor de risco na partilha de espaço em muitas estradas, sobretudo naquelas em que os automóveis e camiões podem circular a 70 ou 90 km/h. Tal desfasamento de andamentos coloca em risco de vida não somente, como é mais óbvio, o utilizador do veículo de mobilidade suave, mas também os automobilistas que, surpreendidos por lhes aparecer repentinamente um veículo tão lento, ao desviar-se bruscamente, poderão despistar-se ou, até, colidir com outro veículo.
Mas, admito, não é o limite à velocidade máxima que me preocupa ou motiva estas linhas, mas sim um limite de potência que, em última análise, pode permitir a uma pessoa menos atlética ou com limitações motoras vencer uma subida mais íngreme. A esperança de muitos utilizadores era que, tal como aconteceu com as bicicletas, também para estes restantes veículos elo limite fosse alterado para 1 kW. Ou até, talvez 0,75 ou mesmo 0,5 kW, dado que há diferenças a ter em consideração entre estes veículos e as bicicletas. Como, aliás, tem vindo a ser apontado por alguns estudos e entidades europeias, como a Leva-EU.
Incentivar… proibindo?
Enquanto promotor profissional da mobilidade sustentável, a missão social que escolhi para o resto dos meus dias, confesso que tenho tentado nos últimos meses, empenhadamente, que algo nesta lei, tanto na sua formulação como nos limites impostos, me faça sentido. Algo que justifique estes limites. E isso tem incluído sondar autoridades do sector, activistas ambientais e da mobilidade, comercializadores destes veículos e, claro está, utilizadores.
Foi assim que fiquei a saber algo que nem me tinha ocorrido: a esmagadora maioria destes veículos entretanto já comercializados estão ilegais. Provavelmente mais de 90% têm potências superiores ao agora imposto por lei, que anteriormente era omissa. Portanto, se vir passar algum, o mais provável é que, para se deslocar sustentavelmente, esse seu concidadão esteja a correr o risco de ser autuado e, até, de ver o seu pequeno veículo apreendido.
É certo que necessitamos de muito melhor educação para a cidadania e que o Estado deve impor limites, para garantir a segurança de todos. Mas não deveria começar pelos muito mais pesados e perigosos motociclos, automóveis e camiões?
E, diga-me cá: não se notando ainda também uma aposta efectiva na rápida melhoria da oferta dos transportes públicos, será com leis destas que promovemos a tão urgente descarbonização e uma mobilidade mais amiga do ambiente, da cidade, da rua, da estrada, da ciclovia, da via partilhada, do passeio, do cidadão?
A diversidade da oferta da mobilidade visa a melhoria contínua das condições de deslocação, diminuição do impacto ambiental e o aumento da qualidade de vida, na ótica da sustentabilidade. É visível que um maior número de pessoas tem vindo a adquirir hábitos e a adotar comportamentos mais sustentáveis, mas para que esta transição aconteça é necessário criar condições, sejam elas a nível de infraestruturas, de segurança ou mesmo de informação.
Num ano fortemente condicionado pela pandemia, a mobilidade elétrica em Portugal manteve o seu ciclo de crescimento: aumento de vendas de veículos elétricos; aposta das marcas de automóveis em mais modelos elétricos e mais inovadores em termos de design; subsídios aos consumidores e empresas que optam pela mobilidade elétrica, seja automóvel, mota ou bicicleta; e o aumento da infraestrutura de postos de carregamento de acesso público, a rede Mobi.E, quer em número de postos, quer em potência, com a instalação dos primeiros postos ultrarrápido.
A transição para a mobilidade elétrica é, pois, um processo que não se esgota de um momento para o outro, mas o ano de 2020 foi um ano histórico para a mobilidade elétrica em Portugal. A rede Mobi.E entrou na fase plena de mercado, tornando a mobilidade elétrica uma certeza: atingimos o ponto do não retorno!
Se nos últimos anos a rede Mobi.E conseguiu acomodar a duplicação do crescimento dos consumos na rede, no ano passado, em que a mobilidade esteve fortemente condicionada, os consumos na rede registaram um crescimento de 8%, enquanto o número de postos de carregamento instalados duplicou face ao ano anterior. Atualmente, já existem disponíveis postos de carregamento em 278 Municípios, ou seja, 90% de todos os municípios do país, incluindo as Regiões Autónomas, dos quais 26 foram disponibilizados já em 2021.
Este ano de 2021 vamos, assim, concluir o alargamento da rede a todos os municípios do País e voltar os nossos investimentos para a criação de um piloto focado no aumento de potência da infraestrutura. A estes acrescem ainda os diversos investimentos que têm vindo a ser anunciados pelo setor privado e por diversas autarquias, o que contribuirá para alargar a oferta e, com isso, a confiança dos utilizadores para optarem pela mobilidade elétrica. O objetivo de crescimento médio para os próximos cinco anos é de duplicação anual da capacidade de carregamento de rede Mobi.E.
No médio-prazo os principais desafios para a MOBI.E serão a sua afirmação como instrumento público promotor da mobilidade sustentável tornando-se numa referência, independente e autónoma, que contribua ativamente para credibilizar esta tecnologia e acelerar o processo de transição.
Mas para que possamos falar de um futuro mais sustentável é importante darmos um contributo sólido para ajudar a alcançar os objetivos definidos para a descarbonização. O Roteiro para a Neutralidade Carbónica define que o setor da mobilidade e transportes seja neutro em termos de emissões em 2050 e o Plano Nacional Energia e Clima 2030, aprovado pelo Governo em maio de 2020, projeta como meta para o setor da mobilidade e transportes uma redução de gases de efeito de estufa de 40% até 2030.
Portugal foi o primeiro país a comprometer-se com as metas de neutralidade carbónica e o Governo tem vindo a desenvolver políticas de incentivos e de investimento consistentes com os objetivos traçados. Podemos verificar que fruto das políticas ambientais definidas pela Comissão Europeia, pela Lei Europeia do Clima para 2030, as construtoras automóveis estão a disponibilizar um número crescente de opções com motorização elétrica, o que tenderá a conferir uma maior competitividade às viaturas elétricas, potenciando o seu crescimento e a pressão no aumento da infraestrutura de carregamento.
À medida que este mercado for ganhando maturidade, a consciencialização social para as preocupações ambientais será tão alargada que a opção por soluções descarbonizadas de mobilidade – ativa, partilhada, transportes públicos e elétrica – serão tão naturais como foi a opção do século passado por soluções de combustíveis fósseis.
Em conclusão, a mobilidade elétrica surge num clima social de desejo de renovação e de uma nova consciencialização ambiental em torno da transição para uma sociedade com melhor qualidade de vida e ambientalmente mais sustentável, menos poluente, mais descarbonizada e mais saudável. A mobilidade elétrica atingiu uma solidez notável e está a ganhar terreno em Portugal, sendo uma aposta clara para as próximas décadas. Temos, assim razões para estarmos otimistas e confiantes de estarmos a construir um futuro melhor.
Nem uma coisa nem outra. O desafio – que prefiro não chamar ‘problema’, para ser mais soft – são mesmo as pessoas e os seus comportamentos. E o comportamento humano, no que diz respeito à necessidade de posse e de utilização intensiva de veículos individuais, é difícil de explicar.
Neste artigo, tento demonstrar, de forma simples, o que penso. Vamos, então, a isto… e permitam-me alguma polémica à mistura, pois sou assim ‘por vocação’!
Reconheço e assumo que os veículos elétricos (VE) são superiores aos antecessores, movidos a combustíveis fósseis (VC), em quase todos os aspetos. Mas reforço – como já o fiz por aqui em artigos anteriores – que os motores elétricos são apenas uma fonte de energia, e não a panaceia que o mundo ‘verde’ e do ‘carbono zero’ quer vender. Adoramos comprar, mas não gostamos que nos vendam ou nos empurrem uma ideia ‘pela goela abaixo’!
Obviamente, num formato maioritariamente elétrico, o modelo global de consumo de energia agradece (ver o meu artigo de fevereiro aqui na Revista). A questão não está na energia que alimenta os veículos, mas sim na necessidade que temos de os ter e na forma como, exageradamente, os utilizamos para nos movermos. Logo, a questão é a modalidade de transporte e mobilidade, com as nossas vidas (e deslocações) a serem movidas a carros – não será assim? E, para isso, não mudamos o meio de transporte, mas apenas o combustível. Já pensou nisto?
Resolver os problemas dos antigos VC com os novos VE (embrulhados numa tecnologia verde), para além de novas e dispendiosas infraestruturas de rede de alimentação – apenas para veículos individuais –, ilustra o caminho que estamos a traçar: a contínua dependência do automóvel tal como o conhecemos.
A libertação da cultura do carro requer pensar a mobilidade, das bicicletas ao pedonal, com ênfase muito maior no transporte público. E, acima de tudo, um reconhecimento de que o espaço das cidades mais inteligentes (smart cities) deve pertencer às pessoas, não aos veículos. Ou seja, políticas que reduzam a quantidade de veículos em certas zonas podem ser mais eficazes do que políticas que incentivem a adoção dos VE.
E não estou a ser cínico nem a tentar colocar em causa a estratégia dos fabricantes e das grandes marcas automóveis. Bem pelo contrário: sei que têm investido umas centenas de milhares de milhões de euros para criar um futuro mais elétrico e, para os próximos anos, têm em plano lançar centenas de novos modelos elétricos. Julgo é que vale a pena lembrar que um futuro totalmente eletrificado é ainda uma visão (pela dimensão atual de vendas sobre o total vendido) e não tanto uma certeza.
Das informações que recolhi junto de especialistas, fiquei com algumas certezas e trend lines que partilharam comigo e que vos deixo aqui em primeira mão: a descarbonização do Transporte Individual (TI) será o novo paradigma (com base em economia circular e autoprodução de energia); a tendência do hidrogénio em vários modelos de bateria (pilha) e combustão; uma last mile com pedonalização e modos suaves; os transportes urbanos tendem para o elétrico, seja em TI ou em Transporte Coletivo (TC); no perímetro urbano vai dominar uma abordagem elétrico/híbrido/hidrogénio; o longo curso será movido a hidrogénio/gás natural até 2035; e no TC, cada vez mais hidrogénio, sendo que o gás natural está assumido como combustível de transição até 2035.
Deixo também quatro caminhos para diminuir as emissões de carbono nas cidades, tendo por base a mobilidade verde: uma realocação estratégica da rede rodoviária para ciclovias e trânsito pedestre; prioridade nos cruzamentos para os modos sustentáveis e suaves; mudança na forma como pagamos pela utilização de veículos motorizados nos estacionamentos; e redução da intensidade das emissões do transporte motorizado, seja pela adoção de veículos elétricos (VE), seja pelo tipo de energia que consomem na rede.
No entanto, algumas questões se colocam: os VE vão tornar-se mais convenientes e funcionais para atrair mais compradores e fãs? Os fabricantes, que ainda dependem de alguns modelos para gerar receitas, podem ganhar dinheiro com os modelos elétricos? Como podemos lidar com as desigualdades no mercado? E o preço dos VE vai ficar mais competitivo amanhã? Como recuperar os fluxos pré-pandemia do TC no curto prazo? Que incentivos estão em curso para as cidades e para que se invista mais em mobilidade sustentável?
Outros dados relevantes que nos traz a neurociência são estes: sabemos, hoje, que “95% das tomadas de decisão diárias são de motivação inconsciente” e que “85% das tomadas de decisão de compra são emocionais e apenas 15% são racionais” (Gerald Zaltman). Acredito mesmo que, no limite, até tomamos decisões puramente emocionais e que, por mais irracionais que sejam, tentamos justificá-las racionalmente mais à frente, mesmo que se apresentem como desastrosas.
O tema não é simples. Aceitar a mudança e adaptação é bem mais saudável do que combatê-la, pois permite avançar. Como tudo, esta nova mobilidade mais verde é um processo e uma transformação nos comportamentos (coletivos e individuais). E esse comportamento humano, nas suas necessidades e desejos, continua ainda um mistério… principalmente na necessidade da utilização do transporte individual em detrimento de outros.
Pense nisto sempre com a ressalva de que até a Ciência nasce da falta de consenso e de visões diferentes sobre como resolver um mesmo problema!
PS: e enquanto escrevia este texto tive a feliz notícia de que os stands podem reabrir no dia 15 de março. Logo, e não resistindo à ironia, apressem-se a ir comprar o vosso carro!
Opinião de Gil Nadais Secretário Geral da ABIMOTA – Associação Nacional das Indústrias de Duas Rodas, Ferragens, Mobiliário e Afins
Em 2019, Portugal foi o maior construtor de bicicletas da Europa. Em 2020, apesar da pandemia e da crise, as exportações portuguesas cresceram cinco por cento. Hoje Portugal é apontado como um caso de estudo a nível internacional.
Portugal apostou nas duas rodas e, desde os anos 40 do século passado, existia em Águeda um conjunto de empresas que se dedicavam à produção de componentes e de ciclomotores. Marcas como Casal, Famel, Macal e tantas outras, floresceram impulsionadas por um mercado protecionista e com uma dimensão que lhes permitia, graças a um poder de compra que crescia lentamente, mas suficiente – pois quem tinha uma bicicleta passaria a ter uma motorizada –, manter esse crescimento.
Esses foram os anos dourados, mas com os anos 80 as regras de mercado mudaram. Os hábitos de mobilidade alteravam-se à mesma velocidade que o mercado da mobilidade. O mercado liberalizava-se, o acesso a dinheiro barato e a busca de melhores condições de vida e de mobilidade faziam com que o automóvel fosse agora mais apetecível.
Os anos 90 foram a colocação da lápide sobre as duas rodas, como as conhecíamos até aí. No entanto, se é certo que várias marcas desapareceram, é igualmente certo que várias indústrias renasceram.
Com os anos 90 chegaram novos consumos. O BTT reinventou a bicicleta, tornou-a num veículo que permitia descobrir novos caminhos e com ele chegou um novo público. Na consolidação destes novos hábitos nasceram novas oportunidades. Quem, por exemplo produzia conjuntos de pinhão e cremalheira para as motorizadas, muito facilmente passou a fazer conjuntos semelhantes para bicicletas e quem fazia quadros, também facilmente se adaptou.
Estas empresa ‘sobreviventes’ foram o fulcro para os novos anos dourados da mobilidade nacional.
A existência de meios de produção e de mão de obra altamente qualificada, aliada a empresários com visão de médio e longo prazo, fizeram com que as bicicletas nacionais crescessem e procurassem além-fronteiras novos mercados.
Foi assim desde o início do século XXI, com cada empresa a procurar mercados e a crescer. No entanto, neste tecido, faltava ainda algo que recolocasse a imagem de Portugal, enquanto produtor de bicicletas, num nível qualitativo que permitisse ser competitivo e como a capacidade de produzir em grande quantidade era uma meta extremamente difícil de atingir, pois outras geografias detêm capacidade produtiva de grande quantidade, a aposta centrou-se na qualidade.
Nesta estratégia foi fundamental criar uma marca que abrangesse toda a produção nacional, tal como vimos acontecer, por exemplo, no setor tecnológico, ou há muito, muito tempo que os vinhos de qualidade estão ‘agarrados’ a territórios determinados.
Portugal Bike Value foi a marca ‘guarda-chuva’ que passou a levar todo o setor aos quatro cantos do mundo. O setor cresceu, cresce, de forma sustentada e permanente há mais de vinte anos.
Atualmente, o setor reposiciona-se e cada vez mais temos de falar, não do setor das duas rodas, mas do setor de mobilidade suave. A bicicleta e outros veículos, menos ‘convencionais’, que têm a bicicleta ‘convencional’ como base, são hoje produtos altamente tecnológicos e isso é possível de atingir graças aos investimentos em inovação que estão acontecer.
Inovação na produção – por exemplo, nos próximos meses vai ser inaugurada em Portugal a primeira fábrica de quadros em carbono fora da Ásia. Inovação em desenvolvimento e design. Inovação nos próprios conceitos de veículos.
O setor da mobilidade suave português está a crescer, em contraciclo de muitos outros setores, e está hoje dotado de tecnologia de ponta e de dimensão, que lhe permitem encarar de frente os novos desafios da mobilidade suave.
Temos empresas, temos mão de obra altamente qualificada, temos empresários, temos visão e equipamentos como laboratórios com capacidade de resposta. Temos mercados externos que nos reconhecem na qualidade e capacidade.
O que ainda não temos? O devido entendimento do que é o setor e da sua capacidade dentro de portas. Precisamos que o Poder olhe para a mobilidade suave portuguesa com outros olhos.
No inicio do texto começava por realçar a existência de empresas ligadas à mobilidade em Águeda, mas hoje temos que falar de todo um cluster ligado à mobilidade suave que se estende de Caminha à cintura industrial de Lisboa. Também isto, fruto dos tempos e da pujança do setor na atualidade, só falta que o cluster da mobilidade suave portuguesa chegue ao Terreiro do Paço.
António Saraiva Presidente da CIP – Confederação Empresarial de Portugal
É-me pedido que exponha a visão sobre o setor da mobilidade sustentável visto do lado da Indústria.
Tema complexo, porque o setor da mobilidade é o que mais infraestruturas requer e mais energia consome, mas também porque mobiliza grandes recursos nacionais, materiais e humanos, sendo a indústria a ele associada responsável por uma parte nada desprezável do PIB do país e por uma quota importante das suas exportações.
Para uma análise consistente deste tema, teremos de observar a sua evolução nos últimos trinta anos.
Em 1990, os transportes consumiam menos de 30% do total do consumo final de energia; em 2019, esta percentagem subiu para 36,4%.
Em 1990, o modo rodoviário representava 86% do total de consumo de energia; em 2019, essa percentagem subiu para 95,4% devido à queda acentuada de consumos na ferrovia e na aviação e navegação em território nacional.
É certo que, em 1990, e quanto a sustentabilidade, tínhamos apenas algum consumo de eletricidade no modo ferroviário, ao passo que, em 2019, as energias renováveis representaram 6,6% do total da energia consumida nos transportes, devido, sobretudo, à inclusão de biodiesel no gasóleo.
Esta análise foi necessária para demonstrar que este é o setor mais difícil de descarbonizar e onde a penetração de energias renováveis tem sido menor.
Tal foi reconhecido pelo Governo que, no Plano Nacional Energia e Clima (PNEC 2030), estabeleceu como objetivo para 2030 uma quota de apenas 20% de renováveis nos consumos de energia nos transportes.
Para este objetivo (e outros, mais ambiciosos que, certamente, se seguirão) é necessária uma revolução, não só nos meios de transporte, como nas infraestruturas e, o que é mais difícil ainda, nos hábitos das pessoas e no funcionamento da economia e da sociedade em geral.
E esta ‘revolução’ enfrenta dificuldades:
O transporte de mercadorias por via ferroviária não tem tido qualquer evolução;
A navegação costeira não é estimulada;
O parque de viaturas (ligeiros de passageiros ou de carga e pesados) ascende a vários milhões e, apesar de relativamente envelhecido, não se substitui facilmente.
Claro que as dificuldades devem enfrentar-se e, para isso, há que ler devidamente os sinais, políticos e tecnológicos, porque, neste caso, errar é demasiado caro para o país.
As medidas de política têm, neste caso, grande impacto na economia e nos cidadãos: devem, por isso, ser prudentes, evitando o voluntarismo.
Mas as Empresas têm aqui oportunidades excelentes para aumentar a sua atividade em setores com futuro.
Esta é, também (e, de resto, está a sê-lo) uma janela de oportunidade para o nascimento de novas empresas, quer tecnológicas, quer prestadoras de serviços.
Muito há a fazer e o ponto de partida é, neste caso, favorável:
Existe uma sólida indústria nacional de componentes;
Os setores elétrico e metalomecânico estão claramente preparados para essa especialização;
Temos recursos naturais e indústria no setor das baterias;
Estão decididos apoios e verbas para a mobilidade sustentável como nunca antes existiram;
Há que realizar mais iniciativas, seja mobilidade elétrica, seja na nascente indústria do hidrogénio, seja nos biocombustíveis, seja acompanhando os desenvolvimentos no que respeita aos combustíveis sintéticos.
O bom senso determina que não devemos ter soluções únicas; sou de opinião que, para uma questão tão difícil e de tanto impacto na economia e na nossa vida como cidadãos, necessitaremos de todas as vias que estão ao nosso dispor.
As soluções disruptivas podem ser tentadoras, mas não podemos esquecer que, neste caso, além da necessidade económica de soluções que sejam custo-eficiente, há que salvaguardar o equilíbrio no emprego.
Tenho, no entanto, a esperança de que, mesmo com estas salvaguardas, se atinjam objetivos realistas na mobilidade sustentável
António Manuel Frade Saraiva, Comendador da Ordem do Infante D. Henrique, é, desde 2010, presidente da CIP – Confederação Empresarial de Portugal. É vice-presidente da BusinessEurope, a confederação de empresas europeias que representa as principais confederações de 35 países europeus; vice-presidente do CES – Conselho Económico e Social; presidente do Conselho de Administração do Taguspark; membro do Conselho de Administração da Future Compta; membro do Conselho de Administração do Instituto de Emprego e Formação Profissional; vogal do Conselho Estratégico da SOFID – Sociedade para o Financiamento do Desenvolvimento, IFIC, SA; administrador não-executivo do Conselho de Administração da Global Media. A nível académico, é membro do Conselho de Escola do ISCSP – Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas; membro do Conselho de Curadores do ISCTE – Instituto Superior de Ciências do Trabalho e do Emprego; membro do Conselho Consultivo da Católica Porto Business School; membro do Conselho Geral Estratégico da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. Leciona Corporate Diplomacy no ISCSP e também Desenvolvimento Económico na Coimbra Business School.
Cookies
Se você acha que está tudo bem, basta clicar em “Aceitar tudo”. Você também pode escolher que tipo de cookies deseja clicando em “Configurações”.