fbpx

Green Future-AutoMagazine

O novo portal que leva até si artigos de opinião, crónicas, novidades e estreias do mundo da mobilidade sustentável

A transformação profunda das cadeias de fornecimento de veículos elétricos

A eletrificação da mobilidade, para pessoas e mercadorias, passou um ponto de inflexão e continua a ganhar impulso. Em 2021, os veículos elétricos a bateria (BEV) representaram 6% (ou 4,9 milhões de unidades) de todos os veículos ligeiros vendidos, duplicando a penetração registada em 2020. Os volumes continuam a crescer a uma taxa anual bem superior a 50%, suportada cada vez mais pela procura natural do mercado e por uma oferta que cresce rapidamente, apesar de os incentivos continuarem a ser fundamentais em determinadas regiões.

O crescimento continuará elevado nos próximos anos, conduzindo a uma penetração global de 39% em 2030, de acordo com a consultora BCG – espera-se mesmo que atinja 60% na Europa, o que fará desta a região mais eletrificada. Esta expansão de volume de aproximadamente dez vezes, entre 2021 e 2030, não vai acontecer sem dores de crescimento.

Existem dois aspetos muito distintos nesta difícil mas necessária transformação. Por um lado, a indústria tem de se afastar dos motores de combustão interna (ICE), o que levanta um conjunto de grandes questões sociais e industriais. Por outro lado, a totalidade da cadeia de fornecimento, da extração até à reciclagem em fim de vida – tanto para motores como para baterias – tem de se expandir a um ritmo elevado. Têm de ser efetuados esforços massivos para atingir rapidamente a maturidade técnica e económica, em todos os domínios, incorporando objetivos-chave de sustentabilidade. Iremo-nos focar neste segundo aspeto. 

O estado atual das cadeias de fornecimento – baterias e motores elétricos

A cadeia completa de fornecimento de baterias foi desenvolvida pela China de forma estratégica, ao longo dos últimos anos, até a um ponto em que cerca de 70% de todas as baterias de veículos elétricos são produzidas por empresas chinesas. A CATL, líder de mercado global, produziu o equivalente a 71 GWh de baterias na primeira metade de 2022 (um crescimento homólogo de 115%), o equivalente a cerca de 1,2 milhões de veículos. A China detém uma fatia ainda maior do mercado global de refinação e processamento de minerais (e.g. lítio, grafite, cobalto, níquel), apesar de a maioria da extração ocorrer na América Latina, África, Austrália e Sudoeste Asiático – não na China.

Separadamente, a estratégia inicial da maioria dos OEM [Original Equipment Manufacturers – Fabricantes de Equipamento Original] consistiu em subcontratar a produção de motores elétricos, uma vez que esta era uma tecnologia totalmente nova para estas empresas. De forma inversa, a Tesla integrou verticalmente a produção de motores desde o início. A Renault foi outra exceção, tendo desenvolvido e produzido o seu próprio motor para o Zoe desde 2012 (quando o mercado estava ainda a emergir). Fornecedores incumbentes, como a Valeo, produtor de grupos propulsores de voltagem elevada, reuniram muito rapidamente recursos intelectuais e industriais significativos que permitem o crescimento atual do mercado de veículos elétricos. Mas o statu quo não irá durar.

As forças que impulsionam a transformação profunda das cadeias de fornecimento

A combinação das turbulências geopolíticas com a necessidade de controlar melhor e encurtar as cadeias de fornecimento e reduzir a pegada de carbono global colocam pressão no sentido de uma restruturação completa na forma como os OEM adquirem baterias, começando nas minas. Transportar materiais do Chile para a China, levar depois as baterias para a Europa, para potencialmente terminar a montar os veículos nos Estados Unidos não é obviamente sustentável.

A Europa tem, até ao momento, assumido a liderança das iniciativas públicas destinadas a garantir cadeias de fornecimento de matérias-primas e criar o quadro regulatório para gerir as baterias desde a mina até ao ‘cemitério’. Por exemplo, o projeto REESilience da União Europeia tem como objetivo construir um sistema de produção que garanta uma cadeia de fornecimento mais resiliente e sustentável para metais de terras raras e ímanes para motores elétricos.

Com muito mais ambição, a União Europeia está a finalizar o quadro regulatório para baterias, que aguarda ainda aprovação final. Esta abordagem centrada em dados dá resposta a uma série de assuntos críticos, incluindo o CO2 emitido durante a produção das baterias, conteúdo reciclável, desempenho e fiabilidade, gestão de final de ciclo, sistemas de diligência na aquisição de matérias-primas, bem como rotulagem. A implementação iniciar-se-á em meados de 2024, com a rotulagem a incluir informação acerca da pegada de CO2, seguindo-se a introdução, em 2026, de um ‘passaporte da bateria’, i.e. uma identificação digital para cada bateria individual. Este quadro inédito vai exigir esforços significativos ao longo de toda a cadeia de fornecimento de baterias. Deverá também espoletar iniciativas semelhantes noutras partes do mundo.

Nos Estados Unidos, foi aprovado recentemente, pelo governo federal, um texto transformativo. O Inflation Reduction Act (Lei de Redução da Inflação) aponta a três objetivos, nomeadamente aumentar a penetração de BEV através de incentivos fiscais, desenvolver a produção norte-americana de BEV e reduzir a dependência de países não-amigáveis (essencialmente, China e Rússia) nas cadeias de fornecimento de baterias. O valor do incentivo (até 7.500 dólares por veículo) será ajustado em função da percentagem de matérias-primas/refinadas e componentes de bateria adquiridos a parceiros comerciais amigáveis (até 3.750 dólares para cada segmento). Provar a origem dos materiais irá provavelmente exigir algum tipo de passaporte similar ao que está a aparecer na União Europeia. No entanto, o texto não faz referência a questões criticas, como a pegada de CO2 associada à produção das baterias ou a gestão integral do ciclo de vida.

O que vem a seguir para as baterias?

Foram levadas a cabo múltiplas iniciativas para ‘trazer para casa’ a produção de baterias. Na Europa, as empresas estão essencialmente focados em fabricar células utilizando as tecnologias de outros parceiros, essencialmente empresas asiáticas. Este é, por exemplo, o caso da Northvolt, ACC, Verkor ou Britishvolt, pelo menos numa fase inicial. Comparativamente com os Estados Unidos, a atividade ligada à tecnologia de base das baterias é limitada.

Nos Estados Unidos, emergiram várias start-ups, ao longo dos anos, com o objetivo de levar tecnologias de baterias inovadoras ao mercado. Isto inclui químicas e soluções de produção de ânodos (e.g. baseadas em silício) e cátodos (e.g. fosfato de ferro-lítio, LFP), ou baterias de estado sólido. Contudo, iniciativas intensivas em capital para a produção de células são predominantemente levadas a cabo em conjunto com empresas asiáticas – por exemplo, Panasonic com Tesla e Ford, LG Chem com a GM, Stellantis, Ford e Honda). Os fabricantes estabelecem parcerias com fabricantes de baterias e investem milhões de dólares para assegurarem fornecimentos de longo prazo.

Muito terá ainda de ser feito no que concerne a extração e refinação de minerais, bem como a sua transformação em ânodos e cátodos. No entanto, fabricantes de todo o mundo estão a atrever-se cada vez mais a montante, nas suas cadeias de fornecimento, garantindo contratos de longo prazo para matérias-primas, e por vezes investindo em projetos de extração ou processamento de minerais. A BMW, por exemplo, investiu no Lilac Group, um produtor de lítio. A GM e a Stellantis também investiram 50 milhões de euros na Vulcan Energy Resources, outro fornecedor de lítio; e a GM assegurou remessas de cobalto, a longo prazo, da Glencore. A Tesla, que é já o OEM com maior integração vertical, está até a considerar refinar lítio dentro de portas. Este aspeto assumiu claramente importância estratégica!

Os fabricantes estão também a envolver-se crescentemente a jusante da cadeia de fornecimento, comprometendo-se com parcerias de longo prazo com empresas ligadas à segunda vida das baterias, como é exemplo a Moment Energy no caso da Mercedes e da Nissan. Finalmente, estão também a abordar empresas de reciclagem – e.g. Redwood Materials e Volvo, Ford, Toyota e Grupo Volkswagen.

E sobre os motores elétricos?

Vários OEM reconsideraram recentemente a sua estratégia inicial, que consistia em adquirir motores. Alguns estabeleceram parcerias com fabricantes de motores e trarão uma parte das suas necessidades aquisitivas para dentro de portas, como no caso da Stellantis e Nidec, ou a Renault e Valeo. Outros ainda simplesmente compraram fornecedores de motores ou provedores de tecnologia, como fez a Mercedes com o especialista britânico de motores de fluxo axial Yasa, para os seus veículos de alto desempenho.

Tal como no caso das baterias, existem múltiplas soluções tecnológicas de motores elétricos. Os fabricantes estão a fazer progressivamente estas escolhas de tecnologia com base no posicionamento dos veículos. Vão provavelmente manter uma combinação de produção interna e aquisições externas, num futuro próximo, para otimizar o acesso à tecnologia, equilibrar os recursos humanos com as necessidades de produção de veículos ICE e gerir custos.

A procura de matérias-primas para motores tem também de ser considerada. Metais de terras raras, requisito para motores de ímanes permanentes, continuam a levantar questões similares às dos minerais para baterias. Na União Europeia, o projeto REESilience procura criar cadeias de fornecimento sustentáveis e resilientes para estes materiais. Em alternativa, os motores assíncronos (indução) e os motores síncronos excitados retiram os metais de terras raras da equação, mas têm as suas desvantagens.

Em conclusão, os OEM estão claramente a afastar-se das cadeias de fornecimento tradicionais, multinível, nas quais tinham pouca visibilidade além dos fornecedores de primeiro nível – com algumas exceções, e.g. paletes de plástico e metal. Estão agora a aumentar a transparência ao longo de toda a cadeia de fornecimento (a montante e a jusante) mas estão também a relacionar-se com empresas em posições estratégicas para assegurarem contratos de longo prazo, desde a fase de extração até à reciclagem em final de vida. Além disso, estão a tornar as suas cadeias de fornecimento mais sustentáveis e resilientes, incluindo perante forças geopolíticas, em certa medida sob as diretrizes definidas pelos governos locais. O desafio é significativo mas conduzirá a uma indústria automóvel mais forte.

Marc Amblard é mestre em Engenharia pela Arts et Métiers ParisTech e possui um MBA pela Universidade do Michigan. Radicado atualmente em Silicon Valley, é diretor-executivo da Orsay Consulting, prestando serviços de consultoria a clientes empresariais e a start-ups sobre assuntos relacionados com a transformação do espaço de mobilidade, eletrificação autónoma, veículos partilhados e conectados.

Show More