Foram investidos milhares de milhões de dólares na Condução Autónoma (Autonomous Driving – AD) desde o início da década passada – particularmente entre 2016 e 2021 – com a ambição de libertar os seres humanos da tarefa de conduzir e a promessa de aumentar a segurança rodoviária. Empreendedores, capitais de risco e corporações saltaram para um comboio que se tornou uma montanha-russa.
As expectativas cresceram até atingirem o ponto máximo por volta de 2017. Quando a maioria dos lançamentos primeiramente anunciados não se concretizaram, por volta de 2020 caímos numa depressão: o problema da AD era muito mais difícil de resolver do que o previsto. Enormes quantidades de dinheiro foram então ‘despejadas’ em startups de software e sensores de AD, quer através de investimentos privados, quer através da introdução no mercado via SPACs (Special Purpose Acquisition Company). Isto deu a impressão errada de que a expansão da tecnologia estava ao nosso alcance.
Apesar do futuro da condução verdadeiramente autónoma parecer novamente ‘negro’, algumas entidades estão a seguir em frente neste caminho. Nesta altura, um punhado de empresas desenvolve algum tipo de atividade comercial (limitada) sem operadores de segurança, ainda dentro de domínios operacionais (i.e. limites geográficos) limitados. Na América do Norte, a Waymo começou as suas operações de ride-hailing em 2021, na cidade de Phoenix. No início de 2022 foi a vez da Cruise, em São Francisco.
As empresas têm agora de expandir, de forma lucrativa, além das operações em somente uma cidade, que se parecem mais com projetos-piloto. A Gatik [especializada em logística de entregas] já opera em várias cidades nos EUA e Canadá, resolvendo um problema mais simples do que os robotáxis. A Waymo está a lançar-se em São Francisco e em Los Angeles. A Cruise anunciou um novo serviço de ride-hailing em Austin e em Phoenix. Quão rápido serão estas empresas – e outras – capazes de abrir novas geografias e expandir as suas frotas de maneira lucrativa é a questão existencial.
Se algumas empresas estão em fase de implementação, as coisas tornaram-se bastante difíceis para muitas outras. O dinheiro tornou-se mais escasso. Muitas empresas que abriram o seu capital perderam uma porção muito grande do seu valor. Isto resulta naturalmente numa consolidação do setor, dinâmica que se aprofundou nos últimos dezoito meses.
Fusões e aquisições entre 2015 e 2020
Uma vaga contínua de fusões e colapsos é inevitável em qualquer setor, à medida que as empresas encontram interesse estratégico na aquisição de startups, enquanto outras falham os objetivos de crescimento. Na área do software para AD, a GM comprou a Cruise em 2016, a Aptive adquiriu a NuTonomy em 2017, a Apple comprou a Drive.AI e a DeepMap em 2019, e a Tesla ‘apanhou’ a DeepScale nesse mesmo ano.
Um movimento similar tem ocorrido na vertente do hardware para AD, particularmente na área dos sensores. Estas operações de fusão & aquisição servem para entidades bem financiadas acelerarem o desenvolvimento das suas soluções de AD, movendo-se essencialmente no sentido de algum nível de integração vertical. Isto foi possível graças aos milhares de milhões de dólares que cada uma das maiores empresas conseguiu angariar nos últimos anos.
Por exemplo, a Cruise adquiriu a Strobe (Lidar) em 2017 e a Astyx (radar) em 2020. A Argo comprou a Princeton Lightwave (Lidar) em 2017. A Aurora adquiriu a Blackmore Sensors (Lidar) em 2019 e a Ours Technologies (Lidar) em 2021. A Oyster comprou a Sense Photonics (Lidar). E esta lista não é exaustiva.
Consolidação acelera a partir de 2020
Em finais de 2020 emergiu uma vaga de consolidações muito mais profunda. As entidades adquiridas não são já startups com algumas dezenas de funcionários, mas antes empresas muito mais maduras, algumas com 2.000 trabalhadores. Foram tomadas grandes decisões de alocação de capital – até certa medida, em virtude da pandemia – que resultaram em grandes operações de fusão & aquisição.
A Uber vendeu a ATG, com os seus cerca de 1.200 trabalhadores da equipa de desenvolvimento de AD, no final de 2020. Em 2021, a Lyft replicou o concorrente e vendeu a Level 5, a sua unidade de AD com uma força de trabalho de cerca de 300 pessoas, à Woven Planet da Toyota. Estas transações tiveram por base avaliações de 3,6 mil milhões e 550 milhões de dólares, respetivamente.
Estes duas empresas de ride-hailing ‘desfizeram-se’ das suas atividades de AD à medida que a pandemia colocava uma pressão excessiva sobre as suas finanças e quando se aperceberam da complexidade da tarefa em mãos. Tornou-se óbvio que seria melhor focarem-se no core business e estabelecerem parcerias com empresas especializadas em condução autónoma para as atividades futuras na área dos robotáxis. No curto prazo, isto parou a sangria financeira provocada por estes ativos. A longo prazo, a Uber pode agora apoiar-se na sua parceria com a Aurora (e a Motional) para as futuras atividades de ride-hailing e transportes pesados autónomos.
A consolidação está a ganhar força à medida que as prioridades mudam e a perspetiva de uma expansão lucrativo dos robotáxis é erodida. Em outubro, a Ford e o Grupo Volkswagen anunciaram o encerramento da Argo, em que cada uma detinha uma participação de 40%. A empresa de AD angariou um total de 3,6 mil milhões de dólares e recrutou cerca de 2.000 pessoas. Os dois Fabricantes Originais de Equipamento (OEM – Original Equipment Manufacturers) decidiram mudar o seu foco para os sistemas de apoio à condução (ADAS de nível 2 e nível 3), que oferecem uma fonte de receitas a curto prazo. A alocação de recursos também tem de ser considerada num período de mudança rumo à eletrificação e aos veículos definidos por software, tarefas obrigatórias para os OEM.
Mais recentemente, as empresas de Lidar Velodyne e Ouster (ambas cotadas em bolsa) anunciaram a sua fusão, com o objetivo de reduzir os seus custos base. Cada uma das empresas perdeu cerca de 90% do seu valor de mercado desde a sua inclusão no índice NASDAQ, em 2020.
Quase todas as empresas ligadas à AD que abriram o seu capital nos últimos dois anos – maioritariamente através de SPACs – tiveram uma grande quebra do seu valor de mercado, entre 70 e 90%. Isto leva a que seja mais difícil angariarem financiamento adicional. Por exemplo, a Aurora angariou um total de 2,1 mil milhões de dólares, que coincide com o seu valor de mercado, uma quebra face aos 13 mil milhões que valia em meados de 2021. As empresas que permaneceram com capitais privados também enfrentam condições de financiamento muito mais difíceis.
Cash-flow positivo antes de se esgotar o dinheiro
Na vertente dos lucros e prejuízos, o negócio tem vindo a recuperar lentamente para a maior parte das empresas. Por exemplo, a Aurora reportou “receitas colaborativas” de 63 milhões de dólares no primeiro semestre de 2022 (incluindo somente 2 mil milhões da área de transporte pesado autónomo no segundo trimestre), mas um prejuízo operacional de 340 milhões de dólares. A empresa espera lançar comercialmente a sua solução de transporte pesado autónomo no início de 2024, mas estima esgotar os fundos que detém em meados do mesmo ano. Este desafio insustentável explica a razão pela qual o CEO da Aurora apresentou ao conselho de administração (numa carta que foi inadvertidamente enviada aos funcionários e que depois se tornou pública) várias opções: vender a empresa, angariar mais financiamento, alienar ativos ou reduzir custos. Não existem soluções fáceis.
A Cruise enfrentou prejuízos de 900 milhões de dólares no primeiro semestre de 2022 mas espera receitas de 500 milhões em 2025. A economia unitária será cada vez mais crítica, já que a empresa determinou um nível de preço competitivo para o seu primeiro serviço de robotáxis, comparativamente ao seu serviço de ride-hailing em São Francisco, apesar de os custos de base estarem atualmente longe de serem comparáveis.
As restantes empresas estão a correr para expandirem os seus negócios enquanto mantêm a segurança como aspeto primordial. Têm de gerar receitas significativas antes de ficarem sem dinheiro ou provarem que o podem fazer antes dos investidores perderem o interesse. As empresas triunfantes serão aquelas que têm financiadores comprometidos a longo prazo ou que iniciaram já a expansão com lucros em vista. As outras terão de ser criativas para terem sucesso.
Marc Amblard é mestre em Engenharia pela Arts et Métiers ParisTech e possui um MBA pela Universidade do Michigan. Radicado atualmente em Silicon Valley, é diretor-executivo da Orsay Consulting, prestando serviços de consultoria a clientes empresariais e a startups sobre assuntos relacionados com a transformação do espaço de mobilidade, eletrificação autónoma, veículos partilhados e conectados.