Ao atingir a marca do meu 100.º artigo, este momento representa tanto uma celebração como uma oportunidade de reflexão sobre a extraordinária transformação que varreu o sector da mobilidade desde que lancei a Mobility Revolution, a minha newsletter mensal, em setembro de 2016. Desde então, o sector foi profundamente abalado por forças tecnológicas, económicas e sociais de grande impacto. Nos 99 artigos anteriores, partilhei a minha análise destes diversos fatores e do seu impacto na mobilidade em geral. Estas reflexões foram alimentadas, em parte, pelos múltiplos projectos de consultoria e prospeção realizados para diversos fabricantes automóveis, fornecedores e outras empresas, bem como pelo meu trabalho de mentor e conselheiro de muitas startups ligadas à mobilidade, provenientes de todo o mundo.
Esta 100.ª edição da Mobility Revolution revisita os principais temas abordados nas edições anteriores, analisando a transformação da indústria desde 2016.
Mobilidade Limpa: Eletrificação e a Busca pela Sustentabilidade
A caminhada rumo à mobilidade limpa definiu grande parte da última década. A eletrificação passou de nicho a corrente dominante, com os veículos elétricos a bateria (BEV) e os híbridos plug-in a ganharem tração significativa nos mercados globais — embora de forma desigual. As vendas globais de veículos plug-in (BEV e PHEV) cresceram de 0,9 milhões de unidades em 2016 para mais de 17 milhões em 2024, incluindo mais de 11 milhões de BEVs. Este crescimento tem sido impulsionado por uma combinação de regulamentações de emissões mais rígidas, incentivos governamentais e a introdução de modelos elétricos mais atrativos.
A China registou um crescimento de 30 vezes nas vendas de veículos plug-in durante este período, atingindo 11 milhões no ano passado — dois terços do volume global atual. A Europa e os EUA cresceram a um ritmo mais modesto, atingindo cerca de 3,2 milhões e 1,5 milhões de unidades em 2024. A tendência foi tudo menos linear, refletindo principalmente alterações nas políticas públicas. O Japão e a Coreia mantiveram-se praticamente à margem, com uma penetração muito baixa de BEVs.
As baterias tornaram-se um tema de importância estratégica à medida que os EVs ganhavam popularidade. O domínio da China na extração e refinação de materiais, bem como na produção de células, levou à mobilização urgente da Europa e dos EUA para localizar a produção e garantir as cadeias de abastecimento. Esta corrida não se prende apenas com oportunidades económicas, mas também com a proteção da soberania nacional numa era de crescentes tensões geopolíticas. A cadeia global de fornecimento de baterias tornou-se um foco estratégico para líderes políticos e empresariais, com a produção local e o desenvolvimento de cadeias de abastecimento independentes vistos agora como imperativos estratégicos.
A eletrificação também levou a uma reavaliação do design automóvel — os BEVs permitem mais flexibilidade de configuração e simplicidade de design — mas são mais pesados. Por outro lado, cresce a pressão por veículos mais leves, pequenos e acessíveis, de forma a tornar a mobilidade limpa verdadeiramente sustentável e ao alcance de todos. A acessibilidade continua a ser um desafio para os EVs, apesar da queda no custo das baterias em três vezes desde 2016.
A eletrificação está a transformar não só os automóveis de passageiros, mas também os veículos comerciais, bicicletas e até a mobilidade aérea. A integração progressiva dos EVs na rede elétrica — usando veículos como recursos energéticos distribuídos, graças à funcionalidade V2G — abriu novas possibilidades para a resiliência e sustentabilidade da rede. Já há vários BEVs capazes de alimentar casas ou ferramentas.
Condução Assistida e Autónoma: Progresso, Recuos e um Futuro Promissor
A evolução dos sistemas avançados de assistência ao condutor (ADAS) até veículos totalmente autónomos tem sido um dos desenvolvimentos mais observados da indústria. Funcionalidades como o controlo de cruzeiro adaptativo, a manutenção na faixa e a travagem automática de emergência tornaram-se comuns, contribuindo para a segurança rodoviária e conveniência do condutor. A ambição de veículos completamente autónomos, no entanto, tem alternado entre progressos notáveis e retrocessos, com dezenas de milhares de milhões de dólares investidos na última década.
Em 2016, o projeto Chauffeur da Google (agora Waymo) tinha acabado de demonstrar o Firefly, um veículo autónomo criado de raiz. Nesse mesmo ano, a GM adquiriu a Cruise, então com dois anos, por cerca de mil milhões de dólares. Um ano depois, a Ford adquiriu o controlo da Argo.ai (com um ano de vida) com um investimento idêntico — o Grupo VW tornou-se mais tarde co-proprietário da startup.
A última década assistiu a uma evolução darwinista no ecossistema da condução autónoma. O número de empresas aumentou rapidamente devido à euforia, mas reduziu-se posteriormente a alguns players fortes. Algumas mudaram para casos de uso menos exigentes, outras saíram completamente do mercado. A Cruise e a Argo.ai fecharam portas após gastar milhares de milhões; já a Waymo prospera. Na China, destacam-se Baidu Apollo, Pony.ai e WeRide.
Em outubro de 2020, a Waymo foi a primeira a operar um serviço de táxis autónomos, sem condutor, aberto ao público. Hoje, robotáxis operam comercialmente em cinco cidades nos EUA e cerca de dez na China. A Waymo e a Baidu Apollo — os líderes nos EUA e China, respetivamente — oferecem atualmente cerca de 250.000 e 100.000 viagens pagas por semana. No entanto, uma implementação comercial em larga escala continua a estar a vários anos de distância.
O transporte de mercadorias surgiu também como um caso de uso promissor. Contudo, nenhuma empresa opera ainda comercialmente em autoestradas sem alguém presente na cabine — por razões técnicas ou regulamentares. A Aurora parece ser a que está mais próxima desse feito.
Software, Veículo Definido por Software (SDV) e Inteligência Artificial: A Transformação Digital
Talvez a mudança mais profunda da última década tenha sido a transformação digital dos veículos e serviços de mobilidade. A ascensão dos veículos definidos por software (SDV) — paradigma inaugurado pela Tesla — redefiniu o design automóvel, a engenharia e os modelos de negócio. A integração profunda de software permite agora atualizações over-the-air, experiências de utilizador melhoradas — impulsionadas sobretudo pela Tesla — e novas fontes de receita recorrente através de funcionalidades sob pedido.
Os fabricantes tradicionais enfrentam decisões estratégicas sobre desenvolver software internamente ou recorrer a parceiros externos. A indústria está a passar de uma mentalidade centrada no hardware para uma centrada no software, com fortes implicações nos ciclos de desenvolvimento, captação de talento, cadeia de fornecimento, estrutura organizacional e cultura empresarial. A conectividade generalizada potenciou ainda mais o crescimento de serviços e funcionalidades digitais, com os fabricantes a esperarem receitas anuais na casa das dezenas de milhar de milhões, com margens elevadas.
Completamente ausente em 2016, a Inteligência Artificial tornou-se omnipresente em todo o ciclo de vida dos veículos. A IA já assiste no design, engenharia, programação, fabrico, testes, conformidade, gestão de cadeias de abastecimento, controlo de qualidade e operações internas. No lado do cliente, alimenta o marketing e retalho, assistentes virtuais, experiências personalizadas, bem como manutenção preditiva, assistência e gestão de sinistros. No entanto, a sua adoção levanta preocupações sobre a substituição de empregos, tornando essencial o re-/upskilling.
Mudança Modal: Novos Modelos de Negócio
A convergência da eletrificação, autonomia, conectividade e mobilidade partilhada obrigou todo o ecossistema automóvel a reorganizar-se. Os incumbentes tiveram de forjar novas parcerias, adotar modelos de negócio inovadores e renovar cadeias de fornecimento. A conformidade regulamentar e as tensões geopolíticas — recentemente sobre tarifas e acesso a recursos críticos — adicionaram camadas de complexidade às operações globais.
Uma das mudanças mais significativas da última década foi a transição da posse para o uso do veículo. Modelos como Mobilidade como Serviço (MaaS), ride-hailing, car-sharing, bem como bicicletas e trotinetes partilhadas ganharam tração. A Uber realiza cerca de 200 milhões de viagens por semana, cinco vezes mais do que em 2016.
Uma nova dimensão empolgante está a emergir com a mobilidade aérea avançada. Empresas como a Joby e Archer estão prestes a lançar operações comerciais com as suas aeronaves elétricas de descolagem e aterragem vertical (eVTOL), após investirem milhares de milhões — com apoio da Toyota e Stellantis.
Novos Fabricantes e a Ascensão dos OEMs Chineses
A última década assistiu à ascensão impressionante de novos fabricantes, com destaque para os OEMs chineses. Empresas como BYD, Geely e SAIC expandiram-se rapidamente além do seu mercado doméstico, beneficiando de apoio governamental, vantagens de custo e cadeias de abastecimento robustas, desafiando os grandes players globais.
A BYD, por exemplo, passou de vender 100.000 veículos em 2016 para 4,3 milhões em 2024, tornando-se a maior fabricante de BEVs do mundo com 1,8 milhões. A Geely construiu um império global com marcas chinesas e europeias, um fornecedor focado em SDVs e parcerias estratégicas (Mercedes e Renault). A Xiaomi, gigante de smartphones e eletrónica de consumo, teve sucesso onde a Apple falhou; prevê vender 350.000 veículos em 2025, partindo do zero em 2023.
Os fabricantes chineses não só conquistaram a maior fatia do seu mercado interno, em detrimento dos estrangeiros, como estão a avançar na Europa, Sudeste Asiático e América Latina. Com capacidade de produção excedente, focaram-se nas exportações, posicionando-se como concorrentes formidáveis no cenário automóvel global, com 5,9 milhões de veículos exportados em 2024 vs. 700.000 em 2016. O seu sucesso assenta em cadeias de fornecimento de baterias líderes mundiais, fortes competências digitais e uma capacidade de inovação a alta velocidade. Os fabricantes tradicionais estão agora a correr para recuperar o atraso.
Inspirados pelo sucesso da Tesla, uma nova geração de startups lançou BEVs inovadores, embora com dificuldades. Nos EUA, a Rivian e a Lucid continuam a expandir a sua oferta, apoiadas por forte financiamento — a Volkswagen está a investir milhares de milhões para aceder à tecnologia SDV da Rivian. Já a Fisker e outras falharam. A própria Tesla estabeleceu um novo padrão de desempenho operacional e financeiro, passando de 76.000 veículos vendidos em 2016 para 1,8 milhões em 2024. No entanto, a antiga líder dos BEVs tem vindo a perder vantagem recentemente.
Olhando para o Futuro
Ao refletir sobre os 99 artigos anteriores, é evidente que o sector da mobilidade atravessou uma era de mudança sem precedentes. As várias tendências aqui destacadas remodelaram profundamente o panorama. Olhando em frente, o ritmo da inovação e disrupção continuará intenso, levando a mais consolidação e parcerias. As lições e perceções da última década serão valiosas para uma indústria que continuará a evoluir, adaptar-se e redefinir o futuro da mobilidade — rumo a um futuro mais brilhante.