Os últimos meses transformaram as nossas vidas de uma forma nunca antes vista. Continuaremos a ser afetados negativamente durante meses ou, possivelmente, até anos. No entanto, e se algo de bom surgir com isto? E se usássemos esta experiência profundamente árdua para melhorar alguns aspetos das nossas vidas – por exemplo, para abordar o impacto da mobilidade no aquecimento global? Como outros referiram, não devemos desperdiçar uma crise. Foquemo-nos na Europa, que nesta matéria parece estar ativa em mais frentes do que outras regiões.

O confinamento forçado reduziu drasticamente o uso do transporte rodoviário de passageiros em todo o mundo. Nos seu ponto mais baixo, a quebra foi de 38%, relativamente ao nível normal da Europa, de acordo com a Agência Internacional de Energia (ver acima). À medida que a atividade económica continua a recuperar, o receio de utilizar o transporte público poderia resultar no aumento da utilização de veículos privados, a curto prazo. Contudo, isto não é sustentável nas cidades europeias com elevada densidade, uma vez que causaria congestionamentos insuportáveis.
A redução combinada da mobilidade e da atividade industrial resultou numa atmosfera notoriamente mais limpa, em particular nas regiões mais poluídas. Por exemplo, Paris registou uma queda de 60% nas emissões de NO2, e as dez maiores cidades espanholas registaram uma diminuição similar de 64%.
Os cidadãos (re)descobriram o ar puro e o céu limpo. Um inquérito pan-europeu elaborado recentemente mostrou que 64% dos inquiridos não querem voltar aos níveis de poluição pré-COVID. Simultaneamente, 68% (63% entre os condutores) concordaram que as cidades devem tomar medidas para combater a poluição atmosférica, mesmo que isso signifique impedir a entrada de carros poluentes nos centros das cidades.

Os urbanitas passaram igualmente a apreciar as ruas mais calmas e a possibilidade de caminharem e pedalarem mais livremente com a ausência de veículos. Evitaram os transportes públicos e preferiram andar a pé ou usar bicicletas – as vendas dispararam durante o este período. Esta situação proporciona uma grande oportunidade para os responsáveis políticos e os responsáveis pelo planeamento urbano alterarem o paradigma e tornarem alguns destes benefícios permanentes, tanto mais que outros hábitos também evoluíram, como o muito provável aumento do trabalho remoto.
Duas categorias de iniciativas, pelo menos, surgiram para alavancar esta oportunidade, i.e. uma eletrificação mais rápida das frotas e uma menor dependência dos veículos dentro das nossas cidades. Estão a ser implementadas novas iniciativas para abordar ambas as dimensões, a nível local, nacional e comunitário.
Muitas cidades reduzem o papel dos automóveis na mobilidade
Várias cidades europeias já tomaram medidas para proibir gradualmente a circulação de veículos mais antigos – e eventualmente todos os veículos poluentes –, como Paris, Estugarda, Amesterdão ou Londres.
A capital britânica impõe já uma taxa de congestionamento à maioria dos veículos que circulam no centro da cidade (15 libras, ou 16,75 euros, por dia, a partir deste mês, ao invés das anteriores 11,50 libras), e introduziu uma Zona de Emissões Ultra Baixas (ULEZ: Ultra Low Emission Zone) em 2019. Para acederem à ULEZ, os veículos de passageiros a gasóleo e a gás anteriores a, respetivamente, 2015 e 2006, custa 12,50 libras (14 euros) por dia. É de realçar que Londres tem um dos melhores sistemas de transporte público do mundo, o que é uma condição crítica.
Entre as iniciativas pós-COVID, algumas consistem em tornar permanentes algumas ciclovias que substituíram as vias automóveis durante o confinamento, ou em proibir carros em certas ruas. Os responsáveis pelo planeamento urbano lançaram-se ao trabalho em cidades como Paris, Berlim, Milão, Bruxelas ou Barcelona, que já anunciaram a adoção deste tipo de plano. Por exemplo, 35 km de ruas em Milão serão convertidos durante o Verão para utilização por ciclistas e peões. A atual presidente da câmara de Paris (que concorre à reeleição no final deste ano) reservou 20 milhões de euros para pôr as pessoas a pedalar, e propôs a eliminação de metade da capacidade de estacionamento nas ruas, como parte do longo combate aos automóveis. Roma está a planear 150 km de ciclovias, e Barcelona retirou o estacionamento em 21 km de ruas para criar espaço para os ciclistas.

Imagem: Orsay Consulting
Os oficiais eleitos não são os únicos a tomar medidas. As comunidades estão a juntar-se para implantar ‘Open Street Projects’. A organização sem fins lucrativos disponibiliza serviços de ‘advocacy’, um conjunto de ferramentas e uma base de dados, todos dedicados a ruas abertas, i.e. o encerramento temporário de ruas aos carros, de forma a torná-las disponíveis para as pessoas. Apesar do projeto se focar essencialmente nos EUA, a organização também trabalha com programas de todo o mundo.
As iniciativas nacionais têm como objetivo electrificar a frota
Vários países anunciaram proibições relativamente a veículos poluentes durante os últimos 2-3 anos. Em 2017, a Noruega foi o primeiro país a introduzir a proibição da venda de veículos novos equipados com motores de combustão interna, fixando o prazo limite em 2025. Pouco tempo depois, outros países europeus anunciaram planos semelhantes, como França (2040), Reino Unido (2040), Alemanha (2030) e Holanda (2030).
À medida que programas de incentivos são introduzidos em todo o mundo para revitalizar as economias, estes incluem normalmente fundos para apoiar a indústria automóvel nas áreas em que a sua pegada é significativa. Durante a última recessão, estes programas concentraram-se no desmantelamento de veículos mais antigos, o que ajudou a melhorar os níveis médios de emissões. Desta vez, os programas de incentivo europeus parecem concentrar-se maioritariamente nos incentivos à venda de veículos ‘verdes’.
Por exemplo, o governo francês anunciou recentemente um agressivo plano de incentivos. Os compradores de veículos elétricos com um custo inferior a 45 mil euros beneficiarão de um bónus de 7 mil euros (contra os 6 mil euros anteriores). Se substituírem um veículo mais antigo, tanto a diesel (pré-2011) como a gasolina (pré-2006), os primeiros 200 mil compradores podem obter um bónus adicional de 5 mil euros. Da mesma forma, o plano de recuperação alemão de 130 mil milhões de euros inclui um incentivo de 6 mil euros para a compra de VE, bem como a obrigação de todas as estações de serviço disponibilizarem um local para o carregamento deste tipo de veículos. O país equaciona também aumentar o seu imposto automóvel sobre veículos novos que emitam mais de 95 g de CO2/km, até mesmo duplicando-o acima dos 195 g, ao passo que os VE estariam isentos.

O plano de recuperação da UE inclui esforços para uma mobilidade mais limpa
As iniciativas para reduzir o impacto da mobilidade no aquecimento global constavam, obviamente, na agenda da UE antes da COVID-19. Estas incluem regulamentos sobre CO2, para reduzir a média de emissões empresariais de 120 g de CO2/km para 95 g a partir de 2020, 81 g em 2025 e 59 g em 2030. É atualmente aplicável uma penalização de 95 euros, por veículo e por grama, acima deste limite. Para referência, 95 g de CO2/km equivalem a 4,1 l/100 km para um veículo a gasolina, e a 3,5 l para um veículo diesel.
Como parte do plano de incentivos da União Europeia, o programa ‘Next Generation EU‘, no valor de 750 mil milhões de euros, tem como objetivo “reparar e preparar para a próxima geração”. Um ‘Green Deal’ é parte integrante deste plano, com financiamento orientado para sistemas de transportes e logística mais limpos. Os objetivos incluem a instalação de um milhão de pontos de carregamento para veículos elétricos, e um incentivo às viagens ferroviárias e à mobilidade limpa nas cidades e regiões da UE.
Um desafio multi-stakeholder (a ser) adotado por todos
Regulamentos a diferentes níveis proporcionarão a oferta e a procura para transportes mais limpos. De acordo com a AlixPartners, a indústria já se comprometeu a gastar mais de 200 mil milhões de euros em VE, a nível mundial, até 2024 – a maioria dos agentes teria ficado na zona de conforto dos motores de combustão interna. Uma gama cada vez mais apelativa de veículos elétricos e as memórias dos céus limpos vão fazer com que mais compradores optem por veículos limpos, ou prescindam mesmo da aquisição de um. Finalmente, mais empresas estão, gradualmente, a alterar as suas frotas para VE, quer com o propósito da responsabilidade social corporativa, quer por pura necessidade, como, por exemplo, para entregas urbanas restritas.
Estou confiante que a Europa, no seu conjunto, tomará as medidas necessárias para transformar esta crise numa oportunidade para transformar a mobilidade numa parte ainda maior da solução para resolver o aquecimento global, do que as previsões antes da COVID.

Marc Amblard é mestre em Engenharia pela Arts et Métiers ParisTech e possui um MBA pela Universidade do Michigan. Radicado atualmente em Silicon Valley, é diretor executivo da Orsay Consulting, prestando serviços de consultoria a clientes empresariais e a ‘start-ups’ sobre assuntos relacionados com a transformação profunda do espaço de mobilidade, eletrificação autónoma, veículos partilhados e conectados. Publica mensalmente uma newsletter relacionada com a revolução da mobilidade.