Esta pandemia veio imprimir uma significativa transformação no processo de venda de automóveis. E agora? Como vender automóveis quando o cliente evita as visitas ao ponto de venda?
Uma boa noticia: o comércio de automóveis, neste novo confinamento em Portugal, poderá continuar aberto!
Sem querer ser dramático logo à partida, como fica o planeamento em vendas? Poderíamos, há uns tempos atrás, discutir planos semestrais, anuais e mesmo a dois anos; e agora? Agora, temos um planeamento a semanas ou, em alguns casos, dias. E com uma dinâmica que obriga a ler os dados e o enquadramento diariamente. Ou seja, nunca o medir e os indicadores foram tão relevantes, em gestão de equipas de vendas automóveis, como o são hoje.
Temos de ter um novo modelo de abordagem comercial. Novos canais de venda. A transformação digital terá de ser abrupta. O estar em vários canais e no online é um caminho – trabalhar o virtual selling e o social selling. E nada de lentidão: a velocidade de adaptação é muito importante. O que não fizermos na reformulação de processos comerciais, hoje, pode provocar resultados dramáticos amanhã. Pois estes tempos incertos e voláteis vão continuar por muitos meses.
Existe, então, uma clara oportunidade para repensar a estrutura, o controlo da operação, o que gera fluxos de caixa e liquidez (modelos, marcas, equilíbrio entre novos, combustão, elétricos, usados e seminovos), reestruturar a oferta por segmento ou rentabilidade, adaptar as condições comerciais… alterar o modelo de abordagem.
Aconselho a um grande foco naquilo que são variáveis passíveis de controlar e que só dependem da equipa e do concessionário, sem perspetiva de que tudo vai normalizar em semanas ou meses, pois não vai. Julgo que apostar fortemente no relacionamento passou a ser ainda mais importante do que era. O momento não é de vender a todo o custo e de atingir objetivos; é de criar relacionamentos, mais do que dar origem a clientes.
Alguns dados para quem anda nas vendas de automóveis e está atento ao novo contexto(fonte: HUBSPOT): 67% da viagem do comprador já é feita digitalmente; quem compra e entra num processo de decisão consome pelo menos cinco peças de conteúdo antes de se envolverem com um vendedor ou visitar um concessionário; 75% de quem quer comprar um automóvel usa redes sociais para tomar decisões de compra.
Outra fonte (Guy Schueller, Diretor da Indústria Automóvel no Google): 95% dos compradores de veículos utilizam o digital como fonte de informação; 60% de todas as pesquisas de automóveis vêm de um dispositivo móvel (e as principais delas relacionam-se a concessionários); cerca de 25% de todas as pesquisas automóveis são sobre peças, serviços e manutenção; mais de 40% dos compradores que assistiram a um vídeo sobre carros visitaram um concessionário como resultado.
E neste contexto mais difícil julgo que a revista Green Future, para além de informar, também educa, forma e deve influenciar comportamentos.
Deixo então estas perguntas para a sua equipa: já virtualiza o processo de vendas, com uma prospeção via live videos em várias plataformas ou webinars? Qualifica e desqualifica clientes com uma reunião no Whatsapp ou Zoom? Descobre preferências com um vídeo no Youtube/Instagram ou artigo no LinkedIn? E demonstrações virtuais (test drive) de novos lançamentos? E um caso de uma compra com testemunho de um cliente? Responde a um cliente com vídeo ou mensagem de voz? Coloca de imediato (por sugestão) o influenciador numa video call?
Todo o processo de venda sem estar fisicamente juntos, é possível? E quais as ferramentas que mais utiliza?
De uma coisa estou certo, com ou sem pandemia, o VIRTUAL SELLING já é um caminho e vai continuar a ser! – a criatividade na abordagem pode-nos diferenciar.
A nossa mensagem tem de chegar à pessoa certa, no contexto certo e com a informação certa, garantindo o melhor resultado para o negócio (oferecer a melhor experiência de compra de um automóvel). E reforço, convicto, que é apenas isso que conta na Era da Assistência!
Os drivers para os próximos tempos devem ser estes: redescobrir os clientes – manter proximidade e relevância; novo foco da força de vendas – novo caminho do comprador; reinventar a comunicação – novas narrativas e abordagens; alinhamento da equipa –indicadores e incentivos; muscular a equipa – simplificar, treinar e reorientar em tempo real.
Acima de tudo continue a ser um entusiasta e cuide da sua saúde mental no meio da tempestade, assim como da sua equipa. Em tempos normais, algumas das alterações a fazer poderiam levar meses a serem executadas, e que têm, hoje, de ser implementadas em apenas horas.
Pode estar aqui uma oportunidade para fazer aquilo que sempre se pensou e nunca se fez. A urgência e o estado de emergência do nosso ecossistema empresarial a isso obrigam. O risco de não fazer nada, ou demorar nas decisões, pode ser dramático…
António Gonçalves Pereira Presidente da Ecomood Portugal
No Decreto-Lei n.º 102-B/2020 de 9 de Dezembro pode ler-se, logo no sumário: “atendendo à proliferação de veículos equiparados a velocípedes que podem circular em pistas de velocípedes e em pistas mistas de velocípedes e peões, e à sua extrema perigosidade na partilha de espaço”. Na EcoMood Portugal não poderíamos estar mais frontalmente contra esta formulação. As bicicletas, trotinetas, skates e afins são de “extrema perigosidade” na partilha dos espaços?! Na realidade, é com base neste prossuposto falacioso que a actual lei obriga crianças de 11 anos e outros pacatos ‘peões com rodas’, a circular maioritariamente no meio de carros e camiões, em constante risco de vida.
A insustentabilidade de “o justo pelo pecador”
“Mas há por aí tanto inconsciente a andar de bicicleta e trotineta, não respeitam nada, não têm cuidado nenhum”, ouve-se com alguma insistência. E é verdade. Ainda assim, nada que se compare com o número de ‘inconscientes’ que andam de automóvel nas estradas. E não é por isso que se proíbem todos os automóveis na estrada, certo?
Sim, temos graves pechas nesse campo. Mas essa é uma questão cultural, de cidadania, de educação, não especificamente de mobilidade. É preciso criar melhores cidadãos rapidamente, apostar no desembrutecimento da população, na pedagogia, na sensibilização, no ensino e incentivo a melhores práticas sociais, em todos os campos. Todos! E também, claro está, no campo da mobilidade, da partilha dos espaços, da postura na via pública. Proibir todos de se locomoverem de formas ambientalmente mais sustentáveis por haver quem as use de forma errada ou, até, perigosa, não é um bom caminho. Desincentiva a utilização desses veículos, contribui para o atraso na tão urgente descarbonização.
No nosso sistema cada vez mais se está a legislar com base na proibição. E na coima. Ou seja, temos cada vez mais um Estado que nos proíbe quase tudo, para depois ter receitas quando, quase inevitavelmente, transgredimos. O que cria uma dualidade, uma desonestidade de Estado, cada vez mais dependente das receitas das transgressões dos seus cidadãos. Leis-armadilha que foram criadas para que não se cumpram. E o Estado agradece, para ter essas receitas.
E assim chegamos a leis como a mencionada, insustentável tanto ambiental como socialmente, proibindo e multando os hábitos de sempre dos cidadãos, demonizando o que deveria regulamentar. E quando temos que agir ilegalmente para sermos mais sustentáveis ou melhores cidadãos, ou até para não corrermos risco de vida, algo está muito mal.
Ciclistas ou peões com rodas
Para facilitar e encurtar, vou chamar bicicletas a todos os veículos de mobilidade suave. Mesmo se nesta lei há também alguns erros graves relacionados com os veículos motorizados de micromobilidade, como a ilegalização de quase todos os que já existem em circulação, devido à sua potência. Ao contrário do que acontece com os automóveis, por exemplo, que têm potências e velocidades máximas livres, com consequências muito mais devastadoras. Mas isso fica para um próximo texto. Uma causa de cada vez.
Ciclistas, a 30 ou 40 à hora, seja em exercício físico ou em deslocação, deverão circular na estrada. Estamos de acordo. Ou, muito cuidadosamente, nas ciclovias. Já os restantes utilizadores de bicicleta, com as devidas cautelas, deverão poder andar… EM TODO O LADO!
Fonte da imagem: Internet
Eu? Mesmo não havendo ainda qualquer ciclovia, aqui na zona desloco-me sempre de bicicleta. Até para ir ao supermercado e regressar com dois sacos no guiador. O que, nesse caso, resulta em 400 metros em vez de 1.200, evitando rotundas e ruas agitadas. Ando, portanto, da mesma forma que sempre o fiz, desde criança: pelo caminho mais curto, a corta-mato, passeio, caminho ou estrada. Sempre com cuidado e dando prioridade aos peões sem rodas, quando os há. Cinquenta anos a dar ao pedal, zero acidentes. Ou, até, incidentes.
Sim, há que distinguir ciclistas de peões com rodas. Vamos a casos concretos: utilizemos a Marginal de Cascais, ou Estrada Nacional 6, e sua zona envolvente. Porque é a minha realidade mais próxima e um excelente exemplo da inadequação desta lei. E porque, como em muitos outros locais, a oferta de transporte público rodoviário é, no mínimo, pobre, muito limitada em trajectos e horários, e opera numa óptica de rentabilidade e não de verdadeiro serviço púbico.
A Marginal é, portanto, a nossa ‘lenta via rápida’, única alternativa à autoestrada para circulação entre concelhos. E, dada a localização da A5, em muitos casos é mesmo a única opção, já que, pelo interior das localidades, o trânsito, cruzamentos, rotundas e bloqueios são demasiados. Portanto, se aplaudimos a redução dos limites de velocidade noutros locais, nesta estrada, até que haja alternativas, para que haja algum escoamento, é necessário que os limites de velocidade se mantenham, até porque tem condições para isso, entre os 50 e os 70 km/h. Apesar de muitos, como em todo o lado, circularem bem acima desses limites. Mas este é também um belo caminho de passeio, tanto a pé como de bicicleta. O único para deslocação até às praias para os residentes da zona. As ciclovias são inexistentes. Há até alguns locais que poderiam funcionar como vias partilhadas pedonais e cicláveis mas que, vá-se lá entender, são proibidos para as bicicletas.
Foto: António Gonçalves Pereira
E assim temos os ciclistas, como eu, nas suas licras e bicicletas desportivas, fazendo o seu exercício na estrada, entre os frequentemente apressados carros e camiões. E depois temos todos os outros utilizadores de bicicleta, como eu também, a partilharem os passeios com os peões. Que, salvo raríssimas excepções, se habituaram a esta partilha mais racional e segura, cedendo passagem, pedindo até desculpa quando não se apercebem da aproximação de um destes peões com rodas. Mais racional e segura mas, incompreensivelmente, ilegal. Ou corremos risco de vida ou somos criminosos. Para o legislador, todos os utilizadores de bicicleta teriam que estar a circular na estrada, entre os stressados ‘inconscientes’ de carro e camião. Quem não teve que aprender o código da estrada, a senhora que ainda nem consegue tirar uma mão do guiador, a criança de 11 ou 12 anos, o idoso, a família de quatro ou cinco bicicletas de todas as idades, o pai com o bebé na cadeirinha. Todos!
Portanto, segundo esta lei, peões e bicicletas de dez quilos a partilhar espaços é péssimo, perigosíssimo. Bom mesmo é misturar bicicletas com carros de 200 cavalos e camiões de dez toneladas. Ou seja, antes arriscar a perda da vida de um utilizador de bicicleta, mesmo de 11 anos, do que um arranhão num peão.
Felizmente que nem os agentes da autoridade concordam, na sua maioria, com esta lei, pelo que só costumam intervir quando apanham um dos tais ‘inconscientes’. E mesmo os demais apenas pedem para desmontar, sem mais represálias. Porque também lhes parecerá contraproducente proibir e castigar financeiramente a circulação da bicicleta quando tanto se apregoa a sua utilização.
“Se era para correr risco de vida ou para andar a pé, então não trazia a bicicleta. Ou não vinha, ou vinha de carro.”
Estou consciente que mesmo entre alguns dirigentes associativos de promoção da bicicleta há quem tenha uma opinião contrária a esta, sobretudo por acreditarem que, desta forma, conseguem pressionar mais eficazmente para que se reduza generalizadamente os limites de velocidade dos automóveis e que se acelere a construção de ciclovias, eliminando até a circulação automóvel em muitos locais. Mas, mesmo que se defenda esse caminho, e defendo, entretanto há a realidade actual de Portugal, ainda na pré-história da holandesa, por exemplo. E, como tenho constatado por muitos exemplos próximos, que deixaram de andar de bicicleta exactamente por estas razões, e/ou porque não querem correr o risco de circular fora da lei, não será certamente com estas regras que conseguiremos incentivar a tão desejável e apregoada utilização mais generalizada e frequente da bicicleta.
O autor não escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico
O Green Future AutoMagazine entrevistou Alexandra Gomes, investigadora portuguesa radicada em Londres, responsável pela coordenação da análise sócio-espacial em vários projetos na LSE Cities, referência internacional no estudo das cidades contemporâneas. Ensina também em módulos de planeamento urbano na Bartlett School of Planning da University College London (UCL), onde se encontra a concluir o Doutoramento: ‘Uma análise multi-sensorial do espaço público urbano’.
Tem, desde 2008, desenvolvido o seu percurso académico e profissional fora de Portugal. Foi um objetivo de carreira ou foi uma oportunidade que surgiu? Que balanço faz destes mais de dez anos?
Nunca foi um objetivo meu sair do país. Saí por razões familiares, sempre a pensar que era temporário, e acabei por ficar. Quando cheguei, em 2008, no meio da crise económica, foi muito difícil ter uma primeira oportunidade de emprego. No entanto, a partir da primeira, a segunda apareceu mais rápido. De qualquer forma, foi a FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia portuguesa, com uma bolsa de Doutoramento, que me permitiu entrar para o meio académico, onde estou neste momento.
O meu balanço é bastante positivo, mas tem melhorado com o tempo. Tudo mudou com o início do meu Doutoramento na Bartlett School of Planning da UCL, onde fiz bons amigos, onde aprendi muito e ainda dou umas aulas. E agora, na London School of Economics, na LSE Cities, onde estou a investigar cidades por todo o mundo, e sinto que aprendo algo quase todos os dias.
Em Portugal, quando estava no antigo CESUR do Instituto Superior Técnico, agora parte do Citua, também fazia investigação e aprendi bastante, mas sobretudo sobre Portugal. Aqui, a diferença é que a investigação não tem fronteiras e o acesso ao financiamento, ainda que difícil, é mais fácil que em Portugal.
O que faz um analista de dados na sua área? Qual a importância dessa análise para as regiões, a nível do desenvolvimento sustentável?
Eu faço análise sócio-espacial comparativa de cidades. Através de investigação, mapas, e outras formas de visualização, tento entender como o ambiente construído influencia a sociedade, cultura e ambiente. Como dizemos na LSE Cities, como as cidades e as pessoas interagem num mundo em rápida urbanização. Para saber o que mudar na política pública, temos de saber mais sobre a situação atual das cidades, e a análise sócio-espacial das cidades permite-nos fazer esse tipo de avaliação. No entanto, a importância da análise depende muito dos objetivos do projeto. Se, às vezes, o objetivo é usar dados existentes para criar evidência e mostrar o que se passa numa determinada cidade, outras vezes ajudamos a criar dados que permitam uma análise posterior.
Num dos principais projetos que temos, o Urban Age, tentamos, através de mapas e visualizações comparativas, analisar as diferenças na evolução das cidades, explorando fatores demográficos, económicos, de transporte, ambientais e de governança urbana. O Urban Age tem mais de dez anos de existência e permitiu acumular conhecimento e dados sobre cidades espalhadas pelo mundo inteiro. O desafio aqui é ter acesso a dados comparativos em cidades com escassez de dados – por exemplo, cidades africanas – ou em cidades em que os dados existem, mas não são disponibilizados, como, por exemplo, no Médio Oriente.
Como analista de dados, passo mais tempo a recolher dados, ou a criá-los, do que a analisar ou produzir resultados gráficos. O que não seria possível sem a colaboração de investigadores ou técnicos e políticos locais. Sem dados não há análise, e sem análise o conhecimento académico não avança e o planeamento e a política pública não se adaptam à realidade. Na LSE Cities, o uso de mapas, visualizações e fotografia são importantes porque as imagens são os meios de comunicação mais eficientes e acessíveis. Por isso, muitas das nossas publicações são muito visuais.
No Reino Unido, o investimento público em projetos urbanos obedece a preocupações ambientais e de sustentabilidade? Existe algum exemplo que queira partilhar?
Não posso falar sobre o Reino Unido, porque pouco sei do que se passa fora de Londres. Londres perde muito em termos de sustentabilidade por ser uma cidade de grandes desigualdades sociais. A rede de transportes ferroviária, que cobre quase toda a cidade, tem preços muito elevados, tal como a habitação, o que força a maioria dos que por cá vivem a viver longe do seu local de trabalho, e partilhar casa ou mesmo o quarto. E, embora com muitos espaços verdes, devido ao clima chuvoso, tem poucos espaços públicos e pouca cultura de rua, à parte da zona mais central e turística da cidade. Muitos dos espaços públicos criados nos últimos anos são na realidade privados e controlados permanentemente por seguranças privados. E a habitação social foi substituída por habitação ‘acessível’, cujos preços estão longe de ser acessíveis. Por fim, o Green Belt de Londres [zonas rurais circundantes, onde é instituída uma política de resistência à urbanização], um dos maiores suportes de sustentabilidade da cidade, até há pouco tempo estava ameaçado pela necessidade de expansão da própria cidade.
Em paralelo, o mais recente desenvolvimento urbano tenta seguir um sistema TOD – Transit Oriented Development –, que se traduz em bairros com maior densidade populacional e maior acessibilidade urbana e de transportes. A Congestion Charge que existe desde 2003, uma portagem ‘invisível’ que taxa a entrada de automóveis em Londres, reduziu consideravelmente as entradas, os acidentes rodoviários e a poluição urbana. Enquanto a mais recente Low Emission Zone tenta encorajar os veículos pesados a diesel mais poluentes que circulam em Londres a tornarem-se mais limpos. O investimento em ciclovias nos últimos dez anos, com a rede de bicicletas partilháveis e o estacionamento de bicicletas seguro, Cycle hangar, também ajudou a melhorar a qualidade de vida na cidade. Agora, com o impacto da COVID na vida quotidiana, parece existir ainda mais vontade política para melhorar a caminhabilidade nas ruas de Londres.
Se Londres tem a ensinar em termos de sustentabilidade urbana, também tem muito a aprender.
Londres é uma cidade em permanente construção. Foto: Alexandra Gomes
Considera que, em relação a outros países, Portugal está longe de se afirmar como um país sustentável?
Sustentável é um termo muito abrangente. E eu não sei o suficiente sobre o que se passa neste momento em Portugal e nos países mais ‘sustentáveis’ para poder comparar e fazer uma afirmação dessas. Mas sei que se tem feito muito em Portugal para melhorar a sustentabilidade na sua vertente ambiental, com as energias renováveis, com a mobilidade ativa – veja-se o exemplo do investimento em ciclovias em Lisboa – e o encorajamento à mudança para veículos elétricos, com incentivos fiscais e de infraestrutura. Portugal atingiu já, este ano, o quinto lugar, na Europa, na percentagem de venda de carros elétricos.
Mas também vejo que há muito a fazer em termos de reutilização e reciclagem de recursos, por exemplo. No entanto, sinto que os maiores problemas de Portugal estão no edificado, cuja construção não é energeticamente eficiente, e no uso dominante do carro. Por causa do carro, temos menos passeios – os obstáculos obrigam a andar na estrada –, temos menos transportes públicos urbanos, e menos ainda em termos regionais e nacionais. Enquanto a rede ferroviária no Reino Unido liga as grandes cidades, em Portugal temos cidades como Lisboa e Leiria que só estão ligadas via autocarro, por exemplo. Isto sem falar das deficientes ligações ferroviárias internacionais, onde Portugal parece estar ainda longe do resto da Europa. Em termos sociais e económicos, Portugal, como muitos outros países europeus – e o Reino Unido também não é exceção –, deveria lutar por menores desigualdades sociais, muitas vezes promovidas por processos de gentrificação urbana.
A sua experiência em projetos de investigação à escala global permite-lhe ter uma visão abrangente das diferentes geografias. Quais os aspetos ambientais mais relevantes dos estudos urbanos que realizou em países em desenvolvimento que gostaria de destacar?
Acho que a principal lição da minha experiência é que necessitamos de crescer ou desenvolver as nossas cidades melhor, para uma melhoria climática. A ideia de uma cidade compacta, conectada e resiliente emerge com maior importância na literatura académica e política de cidades, já que em 2030 está previsto que 70% da população mundial esteja a viver em meios urbanos. O que significa que, se nada se fizer, o impacto das cidades nas alterações climáticas será ainda maior.
As cidades existem para eliminar os custos de transporte de pessoas, bens e ideias, de acordo com Edward Glaeser [economista norte-americano], e daí que a forma de planear a cidade e a sua rede de transportes – para carros ou transportes públicos – produza efeitos de longo prazo. Mas vou tentar indicar alguns exemplos de projetos de investigação da LSE Cities (todos em colaboração com investigadores locais) que demonstram que as cidades são sistemas complexos de interação entre variáveis como pessoas e transportes, mas também edifícios, ambiente e outros.
Quando investiguei Hong Kong, verificámos que era uma cidade-estado hiperdensa, de usos mistos, transportes energeticamente eficientes e confiáveis, e onde o trabalho está, em média, a vinte minutos da habitação. No entanto, o rácio entre a sua população e o território disponível para desenvolvimento leva a que a dimensão média da habitação social para uma pessoa seja de cerca de 8 m2, e a altura, proximidade e tipologias de edifícios, mesmo que energeticamente eficientes, produzam claros efeitos de ilha de calor [aumento localizado da temperatura de uma área urbanizada, que contrasta com as menores temperaturas das áreas circundantes].
Adis Abeba, a capital etíope, ainda tem a maior parte da sua população, 54%, a andar a pé, e 31% de transportes públicos. É uma cidade com ruas cheias de vida por ter um desenvolvimento, em termos de transportes, muito diferente de muitos países desenvolvidos, por razões económicas. A questão aqui será de como manter estes níveis baixos de motorização, com o emergente crescimento económico e desenvolvimento urbano que esta cidade está a ter.
Por outro lado, no Kuwait, um dos estados mais ricos do mundo, 99% dos seus cidadãos prefere guiar a andar a pé e, por consequência, os passeios não existem. Autoestradas rasgam o deserto e criam barreiras entre os diferentes bairros da cidade. Para além do clima, com temperaturas extremas, a falta de um sistema de transportes de qualidade, e o extremo zonamento e níveis de dispersão da cidade também não ajudam a reduzir os níveis de transporte motorizado individual. O ambiente edificado, com casas individuais de tamanho considerável, não está, no entanto, adaptado ao clima, o que resulta em baixa eficácia energética.
Também no Kuwait, num dos meus últimos projetos, ainda não publicado, concluímos que o planeamento urbano, o desenho urbano e o comportamento individual estão intimamente relacionados, na forma como condicionam a falta de condições de uso e qualidade do espaço público urbano. E que questões de governação urbana, como responsabilidades sobrepostas e políticas de espaço público limitadas, têm dificultado o dinamismo das ruas associado à vida na cidade.
Por fim,o exemplo de Masdar, uma cidade dita sustentável, uma Smart City, criada de raiz em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, é um exemplo que demonstra que uma cidade inteligente não funciona necessariamente. Os edifícios têm materiais adaptados ao clima, as ruas têm sistemas de ventilação próprios, e são desenhadas por forma a criar sombras, juntamente com um sistema de transportes públicos elétricos – cápsulas de quatro pessoas – que viajam e distribuem os viajantes por baixo da cidade. No entanto, Masdar encontra-se longe do centro da cidade, e fora da continuidade urbana, e sem transportes rápidos de ligação a Abu Dhabi. Ou seja, tem tido dificuldade em atrair pessoas e empresas, e aqueles que lá vivem ou trabalham, guiam e têm um carro estacionado num enorme parque exterior. As poucas lojas que lá existem são caras e a cidade tem tido dificuldade em atrair residentes e empresas… pelo que só parte do projeto está construída.
O que considera urgente modificar, para tornar o planeta mais verde e sustentável? Que comportamentos podemos ter, conjuntamente, os mais de dez milhões de portugueses, para tornarmos possível o futuro que queremos? Estas medidas podem ser tomadas ao nível de cada país? Ou só poderemos ter um mundo melhor com medidas à escala global?
Eu acho sempre que todos nós podemos ajudar a influenciar o mundo. Mesmo que algumas medidas precisem de ser globais, podemos sempre começar e dar o exemplo. Reutilizar e reciclar são medidas que todos nós podemos tomar. Reduzir o consumo e o desperdício, de comida a outros produtos, e mudar o nosso comportamento em termos de mobilidade, dando preferência ao transporte público e às bicicletas, por exemplo. E para aqueles que precisam mesmo de um carro por razões pessoais ou profissionais, então a mudança para um carro elétrico seria algo a considerar.
Depois, medidas relativas a uma construção sustentável, energias renováveis, reciclagem, tratamento de lixos e águas residuais, ou em termos de políticas de apoio às indústrias, serão a nível nacional e internacional aquelas que farão mais sentido. Mas, em tudo isto, pode ser preciso pressionar, e por isso ativistas e grupos de pressão – grupos de moradores, de ciclistas, etc. –, podem ter aqui um papel fundamental de colaboração com os governos locais na melhoria das nossas cidades. Para além de uma melhor integração de políticas a diferentes escalas e de uma colaboração dos diferentes níveis de governação nacionais e mesmo internacionais, entre cidades, especialmente ao nível da União Europeia.
Isto sem querer tirar importância ao papel da academia, na investigação e consultoria e no incentivo a uma melhor consciencialização ambiental e de redução da pegada ecológica. Na Universidade, por exemplo, estamos a tentar reduzir o número de voos que fazemos para trabalho de campo, conferências e ensino por questões ambientais, para redução da pegada de carbono. No entanto, isso vai implicar um esforço no reforço do apoio local, que muitas vezes passa por aumentar substancialmente as redes de contactos existentes.
Vias segregadas para autocarros e bicicletas, em Londres. Foto: Alexandra Gomes
A mobilidade elétrica está em grande crescimento em Portugal. Como vê o seu desenvolvimento no Reino Unido?
Também aqui só posso falar do que se passa em Londres.
O DLR – Docklands Light Railway, que é um metro de superfície automatizado e elétrico, é um dos investimentos em termos de transportes que mais me surpreendeu pela positiva. Liga os dois principais centros económicos de Londres e transporta diariamente milhares de pessoas, sem alguns dos problemas que o metro ou os comboios têm, nomeadamente os atrasos constantes e problemas de manutenção.
Em 2018, o Mayor de Londres lançou a sua Estratégia de Transportes, com a ambição de tornar a rede de transporte de Londres numa rede carbono zero até 2050, apoiando a mudança para tecnologias de emissão zero, como carros e autocarros elétricos. Em 2019, Londres tinha mais de 20.000 veículos elétricos e 1.700 táxis elétricos, e a rede de autocarros atingiu os 400 autocarros elétricos. O que, não sendo um número significativo numa cidade como Londres, é uma das maiores frotas elétricas da Europa.
As bicicletas elétricas surgiram em Londres há uns anos, mas a relação preço-distância não compensa e não tinham, na altura, planos de preço anuais. Temos de perceber que a escala de Londres não é a de Lisboa, e como a maior parte das pessoas não vive na zona 1, o preço de ir entre casa e trabalho torna-se demasiado caro. Note-se que só o Metro de Londres tem seis zonas e que a zona 1 tem o tamanho aproximado de Lisboa. Para distâncias curtas, sendo Londres plana, as bicicletas não elétricas promovidas pelos TFL – Transport for London compensam mais.
Uma das importantes inovações tecnológicas, não necessariamente, mas dominantemente elétrica, prende-se com o facto de a mobilidade ser cada vez mais partilhada: carros, bicicletas e mesmo táxis – por exemplo, a Uber – que têm revolucionado a forma como nos movemos em Londres. Ao mesmo tempo, a tecnologia, agora reforçada como consequência da COVID-19, tem reduzido o movimento e a necessidade de encontros físicos para existir socialização.
Como consequência, não posso deixar de realçar o impacto que a COVID-19 está a ter na forma como estamos a viver a cidade. E a importância que irá ter no futuro do desenvolvimento urbano, onde provavelmente haverá mais trabalho a partir de casa, com um claro impacto nos transportes públicos e privados. E onde oportunidades poderão aparecer para um maior crescimento do uso de bicicletas elétricas e de modos de transporte elétricos partilhados.
DLR, o metro de superfície londrino. Foto: Alexandra Gomes
Como definiria a cidade ideal?
A cidade ideal é difícil de definir. Se aprendi algo em investigação, é que podemos criar um espaço físico ideal e esse espaço não ser confortável para aqueles que o usam.
De qualquer forma, a minha cidade ideal está muito próxima daquilo que são as maiores cidades portuguesas. Uma cidade de bairros, de escala média, com densidade populacional média, proximidade ao mar ou a um rio. De malha orgânica, mas também com áreas de construção mais moderna e energeticamente eficiente, com mistura de usos, e principalmente com cultura do espaço público: esplanadas, espaços para estar, jardins urbanos. Seria uma cidade com transportes públicos metropolitanos eficientes e integrados – em termos de rede, gestão e bilhetes–, poucos carros e, se possível, elétricos e partilhados, e muito mais bicicletas e peões nas ruas. E claro, com mais ligações regionais e internacionais ferroviárias rápidas. Mas também uma cidade de menos desigualdades sociais, e com acesso a habitação, cultura, educação, e serviços básicos de saúde.
Ao contrário de alguns países onde fiz investigação, acho que em Portugal temos potencial para ter várias cidades ideais, temos a base e as ferramentas para fazer das nossas cidades uma cidade ideal. Não precisamos de criar nada de novo, apenas temos de adaptar o existente e construir o novo melhor, por forma a tornar o que já temos mais socialmente inclusivo e ambientalmente amigável. E até temos um clima moderado que ajuda muito.
Alexandra Gomes é investigadora na LSE Cities. Tem experiência em investigação em diferentes geografias e escalas de análise, desde a Europa e Médio Oriente ao Sudeste Asiático e África. Desde 2010, ensina na Bartlett School of Planning da UCL, onde se encontra a concluir o Doutoramento. Mestre em Estudos de Desenvolvimento pelo ISCTE; Licenciada (pré-Bolonha) em Engenharia do Território pelo Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa. Em Portugal, trabalhou também em ordenamento do território, mobilidade sustentável e análise espacial no CESUR – Instituto Superior Técnico, e na Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo (CCDR LVT).
Na União Europeia (UE) e em Portugal, o setor dos transportes ainda é maioritariamente dependente de combustíveis fósseis. A Europa é responsável, atualmente, por um quarto das emissões de gases com efeito de estufa (GEE), do qual 71,7% resulta do transporte rodoviário, e estes valores têm apresentado uma tendência de crescimento. Em Portugal, o cenário é semelhante, com o setor dos transportes a posicionar-se enquanto o segundo maior responsável pela emissão de GEE, com 25,6% das emissões em 2018.
Posto isto, e dado o impacto que este setor tem para a economia nacional e europeia, torna-se inevitável o desenho de políticas que demonstrem eficácia na concretização dos desígnios de descarbonização. Neste âmbito, a Comissão Europeia (CE) tem vindo a adotar agendas políticas ambiciosas, impondo, para 2030, uma meta de redução de emissões de 30% (em comparação com 2005) para os setores não abrangidos pelo Comércio Europeu de Licenças de Emissão, onde se inserem os transportes, que repercutem em metas nacionais vinculativas a incorporar nos Planos de Energia e Clima de 2030 (PNEC 2030) pelos Estados-Membros.
Adicionalmente, em 2019, a CE redefiniu as normas de desempenho para novos automóveis, impondo requisitos de emissões poluentes mais exigentes a adotar por parte dos fabricantes a partir de 2021. A CE reconheceu que os novos padrões de emissão serão os últimos para veículos convencionais antes de passarmos para alternativas de baixo ou zero emissões, para que possamos garantir uma recuperação saudável e verde da crise económica e enfrentar, de forma eficaz, a crise climática. Já neste contexto, o Green Deal veio introduzir uma meta a longo prazo para o setor dos transportes, de 90% de redução de emissões de GEE até 2050.
Perspetivando que os Veículos Elétricos (VE) serão, a curto/médio prazo, a solução mais custo-eficaz para o transporte individual de passageiros, existe ainda um longo percurso a fazer. Torna-se essencial aumentar a oferta de veículos em mercado, a criação de infraestruturas de carregamento e abastecimento, a produção sustentável de baterias e a criação de soluções para a sua reciclagem na Europa. Prevê-se que até 2025 serão necessárias cerca de um milhão de estações de reabastecimento e recarregamento públicas para os cerca de 13 milhões de veículos com nível nulo ou baixo de emissões a circular nas estradas da UE1.
Atualmente existem 975.000 veículos com baixo nível de emissões na UE, para os quais estão disponíveis 140.000 pontos de recarga, dos quais 76% se encontram em apenas quatro países, Holanda, Alemanha, França e Reino Unido2. Apesar das políticas de incentivo fiscal à aquisição de VEs, Portugal apresenta ainda uma infraestrutura de carregamento elétrico muito deficitária, o que desmotiva potenciais utilizadores à sua adoção. Em 2019, Portugal dispunha de um parque de VE de cerca de 84.615, com apenas 2.252 postos de carregamento3. E ainda, para além de muitos destes postos serem de baixa potência, com longos tempos de carregamento, alguns deles encontram-se frequentemente inoperacionais por deficiente operação e manutenção.
Outra das principais barreiras à adoção de VE passa pela ainda reduzida autonomia de que estes dispõem, com a agravante do elevado preço de aquisição. Não obstante, o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050 (RNC 2050) prevê que em 2030 a mobilidade elétrica se torne custo-eficaz para ligeiros de passageiros, assegurando mais de 30% da satisfação da procura, com um potencial de atingir 100% em 2050. No entanto, verifica-se no mercado um boom na oferta por diferentes fabricantes e modelos de VE.
Face ao custo elevado de um VE, os países europeus têm aplicado incentivos à sua aquisição. Portugal não se encontra entre o top 10 europeu, no entanto o Incentivo pela Introdução no Consumo de Veículos de Baixas Emissões 2020, derivado do Fundo Ambiental, soma ao todo 4 milhões de euros, mais 1 milhão face a 2019. Deste valor, 2,7 milhões de euros são destinados aos incentivos para veículos ligeiros de passageiros, para pessoas particulares o incentivo é de 3.000 euros, e 2.000 euros para pessoas coletivas4. Serve também de incentivo o facto de o estacionamento ser gratuito ou com grandes descontos em muitos municípios. Desde 2010, ano de lançamento da rede Mobi.E, que os carregamentos eram gratuitos, tendo passado a ser pagos em julho de 2020. Já os carregamentos rápidos são pagos desde 2018, dependendo do preço estipulado pelo Comercializador de Eletricidade para a Mobilidade Elétrica (CEME).
Em 2019, foi ainda publicado o regulamento que estabelece as regras para o exercício das atividades relativas à mobilidade elétrica, com vista a dar resposta à estratégia da mobilidade elétrica, abrindo as portas à gestão privada dos pontos de carregamento. Não obstante, ainda existem passos importantes a adotar, principalmente numa perspetiva de planeamento urbano e adaptação das cidades aos novos conceitos de mobilidade integrada.
Assim, e apesar do claro contributo que esta transformação terá para a concretização dos objetivos nacionais para a descarbonização, é importante realçar que este caminho não depende de um único setor, sendo essencial o crescente investimento em outros combustíveis limpos, como o hidrogénio verde, especialmente para a indústria e transportes pesados, em paralelo com uma crescente incorporação de eletricidade renovável.
1 – Pacto Ecológico Europeu, dezembro de 2019
2 – ACEA; Making the transition to zero-emission mobility, 2019 progress report
3 – electromaps.com
4 – Fundo Ambiental, Incentivo pela Introdução no Consumo de Veículos de Baixas Emissões (2020)
Sobre a APREN A Associação Portuguesa de Energias Renováveis (APREN) é uma associação sem fins lucrativos, constituída em outubro de 1988, com a missão de coordenação e representação dos interesses comuns dos seus Associados na promoção das Energias Renováveis no setor da eletricidade.
Ao longo do ano, a equipa do Green Future AutoMagazine deu voz a vários utilizadores de veículos elétricos – pessoas com perfis muito distintos, mas que têm em comum o facto de se terem rendido à mobilidade do futuro.
Recorde as aventuras e experiências dos convidados nesta edição especial da rubrica ‘Voz ao Utilizador’.
A pujança de um mercado pode definir-se pela quantidade de marcas que nele operam. O mercado cresce na razão directa da quantidade de negócio que é capaz de realizar e naturalmente quanto mais negócio, mas capacidade de atrair novos operadores e investidores. Claro que estes só existem se existirem consumidores que os suportem.
Para os consumidores a proliferação de marcas é boa. Têm mais escolhas, mais e diferentes produtos e a tendência natural é que os preços sejam mais difíceis de serem concertados pelos protagonistas do mercado. Ou seja, num panorama comercial realmente livre e em crescimento a cartelização é um exercício difícil de concretizar.
Por outro lado, um mercado maduro tende a criar os chamados ‘gigantes’. Se olharmos para, por exemplo, o panorama de media nos finais do século passado, notamos isso. Os órgãos de comunicação social, os principais, garantiram a sobrevivência unindo-se em redor de grandes grupos que juntaram rádios, jornais e estações de televisão. A chegada da Net a isso obrigou e esses mesmos grandes grupos passaram também a deter uma importante fatia desse negócio.
Perdeu-se pluralidade e se olharmos além, vemos que também se perdeu independência. Os recentes acontecimentos nos Estados Unidos são disso um bom exemplo. Para os consumidores a perda de liberdade é real. A escolha é limitada, cada vez mais limitada.
Ora no sector automóvel estamos a assistir a algo parecido. O mercado amadurece mais rapidamente do que era previsto. Novas tendências, modelos de negócio que ‘caducam’, diferentes produtos ditam novas visões de mobilidade.
Por exemplo, a necessidade de realizar revisões ao motor em cada 10, 20 ou 30 mil quilómetros, deixa de existir com a proliferação de motores eléctricos. O modelo de negócio dos concessionários tem que se reinventar e o dos fabricantes também.
O recente anúncio da fusão do Grupo Fiat, que já detinha quase tudo quanto era marca italiana e que ‘absorveu’ a Chrysler, a Dodge e a Jeep, com a Peugeot é um bom exemplo de como a maturidade deste mercado se está a transformar em concentração. No fundo, este é mais um acto da ‘novela’ de fusões a que temos assistido nos últimos anos. A sobrevivência a isso obriga.
Quando o mercado crescia, quem comprava um certo modelo sabia que estava a comprar algo que era distinto, havia uma personalidade MG, Jaguar, Alfa-Romeu, Porsche e até nos utilitários havia a mística italiana e francesa e a construção de Saabs ou Volvos era financiada com coroas suecas.
A realidade hoje é completamente diversa, quase me fazendo lembrar um desfile de moda, em que muitos convidados ficaram de fora e em que três ou quatro costureiros se entendem para acertarem os pormenores dos desfiles em que apresentam as novidades:
Um fato de fino corte italiano vestido por um manequim alemão, um americano que vive em Itália e veste uma roupa feita em frança. Enquanto lá atrás, nos bastidores, três ou quatro manequins vão trocando de roupa, colocando perucas e maquilhagens para parecerem muitos.
O público maravilha-se com tantas escolhas e do lado de fora do recinto aguarda-os um mundo que se move cada vez mais depressa.
Por opção do autor, este texto não foi escrito de acordo com as regras do novo Acordo Ortográfico.
Pedro Gil de Vasconcelos é licenciado em Cinema e Audiovisuais, tendo sido jornalista da RTP, onde participou e liderou diversos projetos, muitos deles ligados à mobilidade. Atualmente, lidera a Completa Mente – Comunicação e Eventos Lda.
O Green Future AutoMagazine entrevistou Lincoln Paiva, presidente e fundador do Instituto Green Mobility do Brasil e especialista em Gestão de Cidades na Universidade de São Paulo.
Como presidente e fundador do Instituto Green Mobility no Brasil, pode partilhar com os leitores do Green Future quais os aspetos mais relevantes da instituição, no sentido da preservação do nosso planeta, de um futuro mais verde e da construção de cidades mais inteligentes?
Quando fundei o Green Mobility, em 2008, há 12 anos, imaginava que a solução para as cidades, sob o ponto de vista da sustentabilidade do planeta, passaria por uma modificação na motorização dos carros, no powertrain, numa economia de baixo carbono e na alteração da matriz energética. Desde então percebi que não se tratava apenas da tecnologia, mas também do comportamento dos seres humanos. A tecnologia já nós temos. No Brasil os carros são híbridos, circulam com uma mistura de álcool e gasolina, e os carros elétricos estão disponíveis – contudo, são ainda muito caros num país onde 30% da população vive abaixo do limiar de pobreza. Seria preciso estudar melhor as regulamentações, o papel dos veículos na cidade, as infraestruturas de transporte e as nossas práticas ecológicas.
Quando se ‘apaixonou’ e começou a trabalhar na temática da mobilidade urbana sustentável? Foi por imperativos profissionais ou académicos? Ou achou que estávamos num ponto em que precisávamos rapidamente de agir a favor do nosso planeta?
Na verdade, em 2007, tive uma oportunidade profissional para transferir o meu trabalho de São Paulo para Lisboa. Naquela época, quando o IPCC [Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas] tinha divulgado o relatório sobre mudanças climáticas, eu era já especialista em emissões de gases com efeito de estufa, realizando relatórios ambientais. Fui morar para o bairro do Príncipe Real em Lisboa e não tinha a menor possibilidade de comprar um carro, que aliás era muito mais barato do que no Brasil. Contudo, não tinha onde estacionar. Averiguei e o estacionamento mais próximo seria no Teatro São Luís. Desta forma, tive que lidar com esta nova situação. Eu não comprei carro, tive de me adaptar a utilizar os transportes públicos e a caminhar. Esta nova situação mostrou-me um novo mundo, uma nova cidade, pessoas nas ruas e nos cafés – a vida dinâmica em que quem anda de carro participa muito pouco.
Poluição e COVID-19: como é que estes dois fenómenos se intersetam ou complementam no sentido mais negativo? Considera que os impactos de ambos em termos económicos e de saúde são semelhantes?
Sim, a COVID-19 apenas evidenciou um problema maior do que não ter vacina. Os laboratórios profissionais e as universidades não estavam preparadas para o problema, as corporações viram uma oportunidade para lucrar mais rápido e a vacina saiu em menos de um ano, porque os governos a financiaram. O mesmo aconteceu com o meio ambiente, só que como os problemas fatais ocorrem através da acumulação, estes problemas não são visíveis e seu controlo é insuficiente. Todavia, as pessoas estão a morrer prematuramente, dez e vinte anos mais cedo, numa proporção muito maior do que as vítimas de COVID-19 e ninguém dá conta disso. Colocam em segundo plano os investimentos em infraestruturas e saneamento básico nas cidades, onde a COVID-19 é mais eficaz. Ou seja, a população mais pobre é aquela que mais sofre e morre.
Os últimos tempos, que coincidiram com confinamentos e, consequentemente, maior reflexão, poderão ter provocado uma maior consciência das nossas fragilidades e da importância de construir mais espaços verdes e azuis em ambiente urbano?
Eu percebo que nos países mais desenvolvidos, na Europa e nos Estados Unidos, isso se tenha verificado. No entanto, nos países latino-americanos não há [essa consciencialização]. E atualmente no Brasil, um grupo de negacionistas que aproveitam a ignorância da população em diversos níveis sociais, mantida por diversos governos que acreditam na ‘terra plana’, que a ciência quer controlar o homem, que as vacinas não funcionam, querem soluções armadas e governos ditatoriais e não têm apreço pela democracia. Estes grupos não se importam com um mundo mais sustentável. Pelo contrário, querem isolamento, fragmentação e a criação de muros sociais que dividem a população entre pobres e ricos. A restante população, vejam bem, não sabe o que quer, acham que o Estado é grande, que é necessário privatizar, e não dão a menor atenção aos espaços públicos. É preciso retomar a realidade: ser-se ecológico não pode ser confundido com o estilo de vida das pessoas mais ricas, opção para os mais ricos, qualidade de uma determinada marca ou produto. É preciso que signifique que todos tenham maior acesso à cidade, ao mundo.
Temos consciência de que algumas alternativas mais sustentáveis passam pela adoção de uma mobilidade suave – andar a pé, de bicicleta ou recorrer a transportes públicos, adotando uma mobilidade multimodal. No entanto, estes hábitos ainda são muito menosprezados. Será por falta de infraestruturas e de acessos ou por falta de motivação e informação? Ou até de segurança? Ou considera que, de uma forma geral, os cidadãos ainda não perceberam os benefícios de procurar alternativas mais amigas do ambiente?
Eu fiz uma especialização e um mestrado em Urbanismo, fui conselheiro de políticas urbanas do município de São Paulo, fui membro da comissão de paisagem urbana do município e conselheiro de meio ambiente da câmara. Luto há anos por uma política de deslocação mais sustentável. No entanto, os regulamentos, o desenho urbano e as leis não contribuem para isso. Não existe nenhuma lei no Brasil que obrigue um construtor a fazer boas calçadas e elaborar um plano para elas, ou mesmo um mapeamento de calçadas no município. Como isto não origina votos, o espaço público é marginalizado. Aqui, em São Paulo, existe uma lei que transfere a construção das calçadas para o dono da habitação que se encontra em frente. Ou seja, o cidadão é que tem de construir e fazer a manutenção. As calçadas não têm continuidade, ninguém cuida e fiscaliza, o que faz com que estas, que são o primeiro nível de urbanismo, não funcionem.
Na sua opinião, quais são as principais vantagens da mobilidade sustentável a nível urbano e empresarial?
Eu acredito que a parceria público-privada é sempre bem-vinda. Existem oportunidade reais para todos e todos podem lucrar – o Estado, as empresas e os cidadãos. No entanto, isto não se verifica nos países desenvolvidos, uma vez que há um certo grau de ‘patrimonialismo’, isto é, pessoas e empresas que acreditam que devam tirar o máximo proveito dos bens do Estado e levam a cabo uma verdadeira destruição do património público para benefício próprio. Isto faz com que os investimentos em infraestruturas sejam direcionados para grandes obras estruturais e uma simples calçada seja posta de lado, sendo que seria fundamental para um simples programa de mobilidade pedonal. Em Los Angeles, nos Estados Unidos, por exemplo, existe um manual de mobilidade pedonal para o construtor civil rever toda a calçada do quarteirão, e não apenas a secção anexa ao lote onde está a construir. Caso o construtor não se responsabilize, o projeto não será aprovado. Isto abre espaço para profissionais e investigadores. Com isto, a comunidade também sai a ganhar.
Dada a sua experiência e conhecimento, quais são os meios de transporte mais ecológicos que podemos adotar? Considera que são acessíveis para todos ou haverá fatores sociais e económicos que poderão pesar nesta escolha?
Caminhar é o meio mais sustentável que existe, mas depende da oferta de infraestruturas. É possível ver isso como uma enorme oportunidade para todos – empreendedores, cidadãos e Estado.
Como vê o desenvolvimento da mobilidade sustentável no Brasil?
Muito fraco. Registou uma regressão, embora hoje exista uma menor resistência. No entanto, existe ainda muitas pessoas contra esta ideia, sobretudo entre as elites políticas e económicas. Isto leva a que seja necessário atribuir maior importância aos ativistas e aos profissionais do meio ambiente, que precisam de se renovar.
Como perspetiva o futuro das grandes cidades? Na sua opinião em quantos anos se poderá estimar uma verdadeira revolução nas cidades?
Existem cidades que estão muito à frente, embora não pareçam. Londres está num nível bastante superior a São Paulo, que ainda luta para superar a pobreza, as favelas, a falta de hospitais, trabalho, salários, etc. Contudo, o problema da pobreza não é só dos países mais pobres. Os países ricos, como os Estados Unidos da América, originam um maior número de pobres do que o Brasil. Será necessário descentralizar os ganhos económicos e distribuir melhor o rendimento para que as cidades possam obter mais recursos para infraestruturas essenciais. No entanto, é preciso realçar que isto não resultará da privatização, nem do setor privado – que não se interessa por gente pobre. Esse é um papel do Estado. Assim, só depois de se resolver esta situação é que podemos pensar em cidades mais sustentáveis e inteligentes.
Para terminar e retomando ao tema ‘Green Mobility’, pode indicar-nos alguns dos projetos mais relevantes em que o ‘seu’ Instituto está envolvido?
Este ano de 2020 foi um ano muito difícil para todos: tivemos de nos ausentar, refletir, escrever mais; não tivemos tão envolvidos como de 2012 a 2017, quando desenvolvemos uma série de projetos de vias públicas, encerramento de ruas aos carros, planeamento urbano e o laboratório de políticas urbanas. Atualmente estamos a preparar-nos para podermos voltar no momento pós-pandemia. Acreditamos que a prioridade é agora a saúde pública, e estamos 100% confinados, a contribuir para um planeta melhor, mais saudável e sustentável. E aproveitamos para desejar, aos leitores da revista, sucesso, saúde e um excelente ano de 2021.
Durante os primeiros 6 meses da revista, a equipa do Green Future AutoMagazine entrevistou diversas personalidades pertencentes aos mais diferentes setores. Recorde todas as entrevistas no vídeo ao lado